Carta aos Seminaristas 2018-05-12T21:41:11+00:00

Project Description

Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist.
7º Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro
“NOVA GERAÇÃO DE PADRES”

Ano das comemorações dos 277 anos do Seminário São José
451 anos da fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
441 anos da Prelazia do Rio de Janeiro
340 anos da Diocese do Rio de Janeiro
124 anos de Arquidiocese, Província Eclesiástica.
Ano do Jubileu da Misericórdia

 

INTRODUÇÃO

1. Caríssimos seminaristas, realizando um desejo do meu coração de pai e pastor, dirijo-lhes esta mensagem, na qual compartilho com vocês algumas reflexões sobre o ideal a ser buscado na formação dos nossos futuros sacerdotes, ou seja, de vocês.

2. Iniciamos o Ano do Jubileu da Misericórdia. Estamos concluindo o tempo do nosso 11º Plano de Pastoral e preparando o novo. O Papa Francisco tem recordado que é importante viver uma vida de oração e estar próximo do povo. Este é o grande plano! É necessário abrirmos as portas à universalidade e descobrirmos que somos um só povo a caminho.

3. Concluído o Sínodo dos Bispos sobre a vocação e a missão da família, aguardamos a Exortação pós-sinodal do Santo Padre, e já vivenciamos o Ano do Jubileu da Misericórdia, que deve nos marcar de maneira que sejamos o rosto da Igreja misericordiosa nestes tempos tão complexos.

4. “A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém. No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma ação pastoral renovada”. (Misericordiae Vultus).

5. No Seminário Maior, completamos o novo esquema organizativo da formação. A experiência do seminário menor já vai sendo consolidada. Isso vem se somar ao Seminário Missionário e aos trabalhos vocacionais nos vários grupos de acompanhamento pelos vicariatos, foranias e paróquias. Por isso mesmo, aproveitando todos estes acontecimentos, gostaria de refletir sobre a vida e a missão do padre em nossa Arquidiocese.

6. Acabei de publicar a minha quinta Carta Pastoral sobre “São Sebastião, Padroeiro do Rio”, que espero nos ajude a compreender os rumos de nossa pastoral. Nesta presente Carta Pessoal aos Seminaristas irei abordar a necessidade de uma formação que, considerando as novas realidades, possa, ao mesmo tempo, firmar alguns pontos essenciais.

7. Dificilmente conseguiremos adivinhar totalmente o que ocorrerá no futuro durante esta “mudança de época”, mas o podemos vislumbrar pelos acontecimentos de hoje. Como jovens de nosso tempo e iluminados pela ação do Espírito Santo tenho certeza de que vocês terão a luz necessária para serem os presbíteros de que a sociedade necessita. Para isto, é fundamental nunca perder de vista o caminho da santidade, da oração, da presença junto ao povo de Deus.

8. A vocação é Dom de Deus e supõe correspondência daquele que é chamado. Cada seminarista é uma riqueza que o Senhor coloca nas mãos da Igreja, e esta vai ajudá-lo no discernimento e nas decisões quanto aos rumos da própria vida. A história pessoal é uma graça de Deus e cada atitude, por menor que seja, vai definindo o futuro. Tenho uma grande admiração ao escutar os relatos da vida e da vocação de cada um. Isso me faz agradecer a Deus por tantos dons e me sentir ainda mais comprometido em ajudar a levar adiante aquilo que o Senhor começou a colocar nas suas vidas.

9. Rezo para que vocês sejam uma geração de padres santos e grandes missionários animados pelo Evangelho, servindo com alegria o povo de Deus e perseverando na fé e na vocação, que é o grande chamado que ora lhes dirige o Senhor. Nesta “mudança de época” é importante que sejamos ainda mais corajosos e comprometidos em viver com generosidade nossa missão. Nestes tempos complexos e, muitas vezes caóticos, somos convidados a aprofundar nossa vida de fé e de testemunho do Senhor.

10. Os tempos mudam com muita rapidez e as novas situações nos questionam, exigindo respostas. A grande resposta deve ser sempre a nossa generosidade no seguimento de Cristo, a caminho da santidade, sabendo acolher a todos e anunciar a Boa Nova do Reino com entusiasmo. Sermos Igreja samaritana em saída, proclamando a alegria do evangelho nas periferias existenciais de maneira concreta e eficaz, principalmente com o testemunho de vida.

11. Tenho visto belos exemplos e sinais na vida dos seminaristas de nossa querida Arquidiocese do Rio de Janeiro e sou grato a Deus por todos eles – os do Seminário Maior São José, os que iniciam a caminhada com o Propedêutico, os que estão no Seminário Missionário, assim como os que ingressam no Seminário Menor, ainda nos inícios de sua retomada. Destaco também todo o trabalho nas paróquias, foranias e vicariatos e, em especial, o belo trabalho do GVA que, com grande responsabilidade, acompanham as novas vocações. Aqui estão presentes também as pessoas que rezam e apoiam as vocações nos diversos grupos e instituições da pastoral vocacional.

12. Agradeço, de maneira especial, aos formadores que diuturnamente levam adiante a missão de ajudar a discernir os caminhos de Deus no coração e na vida dos jovens. Tenho certeza de que, através da unidade dos formadores com os formandos, cresceremos muito rumo a uma nova geração sacerdotal destinada a continuar os trabalhos de hoje, com os desafios atuais e do futuro. Para isso, precisamos não só de conhecimento e aprofundamento, mas, principalmente, de santidade.

13. Observando a realidade que nos cerca, vemos que, no âmbito da missão à qual o Senhor nos convoca, há muita coisa urgente a ser feita. Entretanto, o fundamento de toda iniciativa sempre deve ser o amor. Ele é a garantia do nosso agir no sentido de que “todos sejam um”.

14. Santo Agostinho sabiamente esclarece a que tipo de amor somos chamados: recordo que dois amores geraram duas comunidades, o amor de si, até o desprezo de Deus, gerou a comunidade dos homens e o amor de Deus, até o desprezo de si, gerou a comunidade de Deus.

15. A comunidade fundada pelo amor de si até o desprezo de Deus é aquela regida pelo orgulho, pela inveja e pela avareza – que são motivos de divisão entre os homens. Essa comunidade tenta copiar a unidade através da simples reunião de pessoas, que não gera vínculo, amizade, comunhão, pelo contrário, é facilmente dissolvida quando acontece algum problema. Não é a simples reunião que queremos, mas sim a unidade que torna irmãos aqueles que, embora nascidos em diferentes famílias, foram batizados na mesma água da regeneração. Essa unidade só vem pelo amor a Deus até o desprezo de si, pois o amor de Deus é fonte de alegria, união e paz.

16. Eis o amor a que somos chamados: o amor de Deus! Este mistério é grande, pois, sendo humanos, somos chamados a amar divinamente. Por nossas próprias forças jamais poderíamos abraçar tão sublime vocação, mas habita em nossas almas o Espírito Santo, que é o Amor na Trindade. É a docilidade à sua inspiração que possibilita amar divinamente. Somos plenamente dóceis quando vivemos uma comunhão no pensar e no querer, ou seja, quando somos amigos em Cristo! A docilidade ao Espírito é fruto da amizade com Deus, que se manifesta como caridade, e que São Paulo descreve de forma profunda ao dizer que “a caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem inveja. A caridade não é orgulhosa. Não é arrogante. Nem escandalosa. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,4-7).

17. Sem a caridade não há perdão nem misericórdia, portanto não há unidade. Neste ano da misericórdia o Papa Francisco tem salientado – e muito – a importância do perdão, recebido e dado. Deus nos infunde a caridade como dom escatológico que Ele concede ao homem para que, vivendo o seu momento histórico, já possa saborear a vida celeste. Pois a caridade jamais acabará, como diz São Paulo. Por ora subsistem a fé, a esperança e a caridade – as três. Porém, a maior delas é a caridade (1Cor 13,8a.13). Isso quer dizer que só a caridade permanecerá, pois no céu a visão substituirá a fé, e a esperança será recompensada pelo cumprimento da promessa.

18. Deus concede esse dom a todos os seus filhos através do nascimento pela água e pelo Espírito. Todas as vocações têm a sua beleza própria e seus valores. Porém, há alguns que receberam uma vocação especial para viver a caridade. Esses escolhidos recebem de Deus uma forma especial de amar que os assemelha ao homem escatológico, pois, vivendo o celibato nessa vida, antecipam a vida futura. Como diz a Escritura, “no céu nem eles se casam nem elas se dão em casamento” (Mt 22,30). Na bem-aventurança conheceremos a unidade perfeita, pois lá Deus é tudo em todos e todos em Deus formamos um só. Se de um lado a vida consagrada experimenta essa vocação e essa missão, também o padre celibatário, com um coração indiviso, a vive nessa perspectiva. Por isso a importância de ver esses dons do Senhor na vida de nossas vocações como Ele nos concede.

19. Assim, podemos dizer que Deus nos deu dois presentes para na Terra anteciparmos a alegria do céu: a caridade e o celibato. O celibatário é o homem da caridade e a caridade dá sentido à vida do celibatário. Esse homem é aquele que, cheio de Deus, faz-se tudo para todos a fim de salvar alguns. O homem que vive da caridade e para a caridade é o homem da unidade. Promover a unidade não é uma opção para o celibatário, mas sim uma dimensão da sua resposta. A busca pela unidade faz parte da realização do ser celibatário. Daí, vem a alegria e a dedicação do homem de Deus chamado a servir o Senhor no Seu povo, dedicando-se de “coração indiviso”, mesmo com sacrifícios, para a missão de levá-los para a experiência do “amor de Deus”.

20. Não me refiro apenas aos sacerdotes e aos consagrados, mas a todos aqueles que se reconhecem chamados por Deus ao celibato ou que, ao menos temporariamente, assumem não casar para fazer a vontade de Deus. Somos células do céu, o mundo espera a manifestação dos dons escatológicos que possuímos dentro de nós: a caridade e a unidade. Por tudo isso, o celibato não pode ser entendido apenas como uma prescrição canônica a ser obedecida por causa da tradição, mas sim como um dom recebido de Deus.

21. Digo-lhes isso para que vivam como aquilo que já são: homens escatológicos! Vocês frequentemente ouvem que são partícipes da ação sacerdotal, mas, no que tange ao celibato, são agentes efetivos da própria doação a Deus. A manifestação dos dons escatológicos já depende de vocês, pois, enquanto candidatos ao sacerdócio, já assumiram para si, ao menos inicialmente, o significado da renúncia à vida conjugal por amor ao Reino de Deus. E aqui está o grande sinal: por amor ao Reino dos Céus.

22. Considerar estas reflexões como espiritualidade utópica seria reduzir o seu conteúdo e menosprezar a força atuante da graça. A viabilidade deste ideal sempre se manifestou nas incontáveis gerações de vocacionados que assumiram este caminho e nele encontraram sua realização pessoal. Quando se assume como um “Dom” e uma graça especial, a alegria da entrega acontece a cada instante na vida daquele que se deixa conduzir pelo Senhor.
23. Porém, a entrega da vida ao serviço do Reino não significa ficar alheio às preocupações do mundo de hoje. Pelo contrário, sabemos que o isolamento é uma das principais fontes de queda para um celibatário, e que os celibatários que parecem ser mais felizes na sua vocação são aqueles que conseguem se relacionar bem com as pessoas e se tornam agentes de unidade, pois suas vidas têm por finalidade a doação de si mesmos a Deus e aos irmãos. Experimentam a entrega da vida como um grande dom que se multiplica nas ações de cada dia.

24. Ocorre que a virtude teologal da caridade tem Deus mesmo como objeto e nos é dada como um dom, mas enquanto virtude exige nosso empenho para crescer. É por meio de nossas ações que concretizamos a prática da caridade e resplandecem com mais vigor os sinais escatológicos que nos caracterizam. No fim, seremos julgados pelo amor! E quanto mais nos colocamos a serviço com alegria, em especial para os mais necessitados, como nos recorda o Papa Francisco, para as periferias existenciais, mais experimentamos que a generosidade nos recoloca na caminhada de entrega com especial testemunho.

25. “É necessário entrar na escuridão, na noite que atravessam tantos dos nossos irmãos. Ser capaz de entrar em contato com eles, de fazer com que sintam a nossa proximidade, sem se deixar envolver e condicionar por aquela escuridão. Ir ao encontro dos marginalizados, ao encontro dos pecadores, não significa permitir que os lobos entrem no rebanho. Significa se esforçar para chegar a todos, testemunhando a misericórdia, aquela que nós mesmos experimentamos primeiro, sem jamais cair na tentação de nos sentir os justos ou os perfeitos”. (Papa Francisco – O Nome de Deus é Misericórdia)

26. Todos nós conhecemos a alegria de praticar atos de caridade, que neste tempo nomeamos como atos de misericórdia, seja nas atividades pastorais, assistenciais ou no aconselhamento espiritual de alguém mais jovem ou inexperiente. Todas essas atividades dão sentido à nossa vida, pois a unidade e a caridade são expressões saudáveis e frutuosas da vida celibatária. Experimentamos a paternidade nessa fecundidade espiritual que nos faz nascer como novas pessoas diante de tanto caos ao nosso redor. É o olhar de fé que faz a diferença.

27. Para os vocacionados ao sacerdócio, os atos da caridade pastoral podem ser resumidos pela participação que terão no tríplice múnus: ensinar, governar e santificar. Entretanto, a caridade pastoral não é apenas o exercício destas funções, mas, sobretudo, o testemunho do amor doação. É por isso que duas coisas importam muito na formação que propomos a vocês: a formação para a caridade e a formação para a pastoral. A primeira quer configurar o ser do pastor e a segunda, a ação do pastor. A união de ambas é que vai conduzi-los ao aperfeiçoamento da caridade pastoral que a Igreja espera de nós.

 

A PESSOA DO PASTOR

28. Acerca da santidade da qual o pastor deve se revestir, a Presbiterorum Ordinis (nº12) nos ensina: “Por sua vez, a santidade dos presbíteros muito concorre para o desempenho frutuoso do seu ministério; ainda que a graça de Deus possa realizar a obra da salvação por ministros indignos, todavia, por lei ordinária, prefere Deus manifestar as suas maravilhas por meio daqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo: „se vivo, já não sou eu, é Cristo que vive em mim‟” (Gl 2,20).

29. Muitas vezes, destacam-se na pastoral a disponibilidade, a alegria, a iniciativa, a honestidade financeira etc. De fato, todas estas coisas importam muito para se ter uma pastoral bem sucedida. Elas são necessárias, ainda mais hoje, porém são insuficientes. A graça de Deus não se manifesta simplesmente em construções ou em contas bancárias, mas sim na santidade do povo. Essa é a obra principal a ser feita em uma comunidade eclesial, e todas as outras existem em função dela. Somos todos chamados à santidade, povo e pastores!

30. Há inúmeros sinais de que Deus age poderosamente em uma comunidade, desde o testemunho das pessoas que abandonam cada vez mais a vida antiga para abraçar a vida nova em Cristo, como na perseverança daqueles que seguem o Senhor até entregar santamente a própria vida em Suas mãos. Isso significa que as pessoas estão se convertendo e a obra da salvação de Deus está acontecendo, através das mãos do sacerdote que pastoreia aquele rebanho. Tenho testemunhado muitos belos exemplos pela Arquidiocese nesta grande cidade! Por eles dou graças a Deus!

31. No entanto, tudo isso não invalida a preocupação com a infraestrutura da comunidade, a administração, os investimentos, as festas etc. Todos esses aspectos têm a sua importância e, quando negligenciados, podem frustrar as melhores intenções do sacerdote. A vida material das comunidades é importante, desde que ordenada para sua finalidade primeira de conduzir as pessoas ao seguimento de Jesus Cristo. Essa conversão do coração não é fruto de técnica retórica, mas sim da obra mesma de Deus agindo em cada membro da comunidade.

32. Nunca se esqueçam de que poderão se tornar excelentes administradores, mas só atingirão o interior dos corações quando trabalharem pela própria conversão, porque esta é a educação para a caridade. Não tenham medo de buscar ser homens melhores, mesmo encontrando muitos empecilhos, a começar pelo confronto com suas fraquezas. Assim, estarão diante do que significa ser humano, ou seja, vocês se tornarão peritos em humanidade. Somos chamados a ser “homens de Deus”.

33. A perícia na qual estamos interessados não é aquela dos teóricos que aprendem apenas com os livros, mas daqueles que experimentam a fraqueza humana e resolvem enfrentá-la. Descobrem o que significa a vitória sobre o pecado, pois Deus nos consola em nossas aflições e necessidades e nos faz enxergar Seus sinais na história. A luta contra as próprias fraquezas nos faz experimentar a confiança na graça de Deus, pois não raras vezes percebemos ter evitado o pecado por causa do auxílio sobrenatural; ou quando vemos os passos dados em nossa história sem saber exatamente como e quando isso aconteceu. São oportunidades de experimentarmos a presença eficaz da graça divina.

34. A busca da santidade, de corresponder cada dia ao Plano de Deus, que nos conduz à perfeição, é o caminho para que o pastor consiga perceber em si mesmo as moções da natureza e da graça. É desse intercâmbio que fala a “Pastores Dabo Vobis”, quando afirma que “a própria formação humana, se desenvolvida no contexto de uma antropologia que respeite a totalidade da verdade sobre o homem, abre-se e completa-se na formação espiritual” (nº45). O primeiro e mais importante elemento para a formação humana do seminarista é, portanto, a firme decisão de acolher o convite à santidade, à conversão, a viver o Batismo, na fé, pois, a partir dessa decisão, fluirão todas as coisas. Recordo-me da Regra de São Bento que coloca para o formador, diante de um novo candidato, que o grande critério deveria ser “se ele realmente procura a Deus”.

35. O compromisso com o próprio aperfeiçoamento é uma dimensão da humanidade, que atinge as outras dimensões formativas, segundo a ordem dada por Cristo de que sejamos santos como nosso Pai do céu é santo. Ou seja, não é a perfeição apenas humana que queremos, mas a perfeição dos santos, para a qual recebemos a formação espiritual. Não basta conhecer a história ou os aspectos da espiritualidade, é necessário o cuidado pela oração diária, a confissão frequente, a fé na eficácia dos sacramentos para promover uma mudança interior em si próprio e no irmão, aceitando também com caridade o outro que caminha conosco. A comunhão e a unidade do presbitério já começam no Seminário, quando sabemos nos acolher em nossas diversidades e nos perguntamos a cada instante: “em que posso servir?”

36. Sendo humanos e santos, vocês começam a construir as bases que sustentam a vocação. Mas ainda falta o conhecimento sobre o seu ser e o seu agir. As normas para a vida moral e o próprio aprofundamento da vida mística pressupõem a formação intelectual, que aparece como elemento fundamental para a humanidade e a santidade. Como fazer um bom exame de consciência sem se dar conta do que é o pecado, ou como desenvolver a oração contemplativa sem compreender os mistérios revelados? Quanto mais próximos de Deus, mais seremos iluminados para enxergar nossa realidade e a experimentarmos com o olhar misericordioso do Senhor, que nos convida a uma nova vida de serviço e missão. 37. Por outro lado, a formação intelectual não pode ser tratada de modo exclusivamente teórico; é fundamental que os conhecimentos que recebemos da fé, em algum nível, plasmem a maneira como vemos o mundo. Hoje, com todas as exigências do mundo ideologizado e laicizado, temos uma grande necessidade de aprofundar nossos conhecimentos. 38. Por isso, não basta aprender sobre um Deus que é Pai amoroso. É fundamental sentir-se filho. Somente assim, o conhecimento intelectual se tornará formação: “A formação intelectual, embora possua a sua especificidade, liga-se profundamente com a formação humana e espiritual, a ponto de constituir uma sua expressão necessária: configura-se efetivamente como uma exigência irreprimível da inteligência pela qual o homem „participa da luz da inteligência de Deus‟ e procura adquirir uma sabedoria que, por sua vez, se abre e orienta para o conhecimento e a adesão a Deus” (PDV nº51).

39. O complemento desses aspectos formativos se realiza pela dimensão pastoral, que fará de um jovem santo e bem preparado um “ancião de muitos dias” para a comunidade dos filhos de Deus. Essa será uma experiência importante: apesar de ter menos idade que muitos paroquianos, o padre ser torna “pai” de uma multidão de pessoas com muito mais idade cronológica.

40. É importante perceber que o que fazemos na pastoral é dedicar às pessoas aquelas três dimensões da função sacerdotal: como pastor que administra os sacramentos, nas ações ordinárias para transmitir a graça de Deus; na formação das consciências dos fiéis, a fim de ensinar-lhes uma visão de mundo segundo o Evangelho; na administração financeira, onde exercerá a honestidade (formação humana) e a habilidade em compreender os trâmites legais do mundo (formação intelectual).

41. A formação pastoral se inicia no seminário, na medida em que ela aparece como uma união das outras três dimensões. Depois, irá gradativamente se aperfeiçoando, com a experiência junto ao povo: “A formação pastoral não pode certamente reduzir-se a uma simples aprendizagem, orientada para a familiarização com qualquer técnica pastoral. A proposta educativa do seminário se encarrega de uma verdadeira e autêntica iniciação à sensibilidade de pastor, à assunção consciente e amadurecida das suas responsabilidades, ao hábito interior de avaliar os problemas e de estabelecer as prioridades e meios de solução, sempre na base de claras motivações de fé e segundo as exigências teológicas da própria pastoral” (PDV nº58).

42. Acredito também que duas sejam as posturas fundamentais para que todo esse processo de formação e amadurecimento se realize: a humildade e a obediência. Não é possível ser formado sem o reconhecimento da necessidade de formação, ou alimentando apenas uma obediência extrínseca. O “se realmente busca a Deus” é confiado a um formador sábio para conhecer as moções interiores de um coração aberto ao Senhor. Não temam esses desafios, mas tomem consciência deles para que saibam o que esperamos dos nossos futuros padres: um coração indiviso e sincero que se coloca continuamente diante de Deus e vive com generosidade e fraternidade autêntica com seus irmãos.

43. Neste Ano do Jubileu da Misericórdia que iniciamos, gostaria de manifestar a vocês a minha esperança pessoal, e quero crer também de toda a nossa Arquidiocese. Como tenho me manifestado pessoalmente a vocês, desejo que sejam uma nova geração de grandes e santos sacerdotes, para que esta Igreja Particular seja celeiro de pastores segundo o coração de Cristo, a serviço do Reino de Deus, e que permaneçam na memória do nosso povo pelos seus exemplos e suas obras. Homens que façam a experiência da misericórdia de um Deus que é misericórdia, e enviou o Seu filho para ser o Rosto da Misericórdia. Fazendo essa experiência, proclamemos a face misericordiosa de Deus como Igreja que somos. Temos belos e importantes exemplos do passado: quantos nomes inscritos no céu e no coração de nosso povo, além de alguns terem dado seus nomes a logradouros dessa cidade. Nestes tempos de “mudança de época” é necessário buscar o essencial de tudo isso e descobrir os desafios de hoje.

44. O Espírito que age na Igreja desde os seus primórdios, concedendo-lhe tantos santos, é o mesmo que age hoje em nós. A nossa busca pela santidade será a semente que plantaremos para o futuro. Lembrem-se de nosso padroeiro São Sebastião, que não sabia que o seu sangue derramado seria a semente de novos cristãos, e que fecundaria com seu exemplo nossa maravilhosa cidade. O meu convite a vocês é para que, juntos com todo o presbitério de nossa Arquidiocese, nos comprometamos com este ideal, confiando não em nossas forças, mas no poder de Deus, que se manifesta poderosamente no meio dos homens. Somos convidados a ver mais longe no horizonte de nossa visão: o chamado a ser presença em nossa sociedade, convidando-a a uma vida fraterna e de paz.
45. Nestes tempos difíceis que vivemos, quando a nossa fé é ameaçada de muitas formas, é necessário que a vida no seminário nos fortaleça para sermos presença de Cristo junto ao nosso rebanho. Quando convoco vocês para serem uma geração de padres santos, como temos belos exemplos em nossa Arquidiocese, quero dizer que a graça de Deus pode se manifestar aqui de modo mais efusivo. A maneira como ela se manifesta já é boa, pois somos uma Igreja viva, mas ainda chamada à conversão. O Papa Francisco nos quer “com cheiro de ovelhas” e uma Igreja em saída e “hospital de campanha” que, próxima das pessoas, anuncie a grande alegria da misericórdia de Deus principalmente nas periferias existenciais. Para isso precisamos fazer essa experiência em nossas vidas.

46. Para que isso aconteça, é importante que os pastores “tirados do meio do povo para servirem o povo nas coisas de Deus” manifestem com maior intensidade o dom de ser um alter Christus caput não só na liturgia, mas também no dia a dia, na vida de nossos irmãos que sofrem passando por tribulações. Isso acontece porque não se pode separar a dimensão litúrgica das demais dimensões, do que se vivencia no cotidiano. A presença de Cristo é irresistível! Quando O encontramos e O anunciamos, essa presença deve contagiar com o bem e a paz as pessoas ao nosso redor! É dessa presença que queremos que vocês sejam os propagadores desde já. É para isto que se voltam as nossas expectativas e sonhos. Não se cansem de buscar os grandes ideais. Vale a pena deixar-se conduzir pelo Espírito Santo. Não deixem que lhes roubem as alegrias de uma doação cada vez mais plena e generosa. Sejam protagonistas de um mundo novo segundo o Plano de Deus!

47. A experiência das missões tanto dentro como fora da Arquidiocese tem sido de uma importância capital. São histórias e existências que vão se acrescentando às teorias e orientações pastorais, que nos motivam ainda mais ao trabalho evangelizador. O entusiasmo com que os vejo atuar nas missões sempre me comove. Vejo também na participação nos vários encontros e mesmo nas celebrações nas paróquias e capelas de nossa Arquidiocese.

48. Temos muito ainda a aprofundar sobre o nosso “ser”, nossa identidade. Porém, temos também o “fazer”. Em conformidade com a Christus Dominus, vocês serão colaboradores do Bispo no tríplice múnus que exerce, de modo que suas ações sejam para ensinar, governar e santificar o povo de Deus.

O MÚNUS DE ENSINAR

49. Todo sacerdote tem o múnus de ensinar. Somos chamados a ser aqueles que alimentam o povo de Deus com a Palavra e suas consequências. É algo essencial para todo padre. No caminho para o sacerdócio passamos pelo ministério de leitor, que justamente nos chamou a atenção para esse múnus de transmitir a Palavra de Deus ao Seu povo. Faz parte de nossa identidade o chamado a alimentar o povo de Deus com a Palavra do Senhor.

50. Porém, temos também aqueles que receberam o chamado para ser sacerdotes professores, em especial como formadores em nossos seminários ou universidades. É uma bela e importante missão! É fundamental que se empenhem em desenvolver o dom que receberam não para o próprio proveito, mas para o proveito da comunidade. Uma das funções do intelectual é tornar simples o que é complexo, para que todos possam provar a sabedoria. Essa regra básica deve se fixar no coração de cada um daqueles que se percebe vocacionado a ser professor.

51. Uma outra missão, que muito me fala ao coração, é que sejam os porta-vozes da unidade, ligada à própria natureza da vocação a que foram chamados. Essa é a grande tarefa de vocês: unir os que hoje estão separados por diferentes linhas de pensamento, sem perder a fidelidade ao Magistério nem separar a Igreja em guetos. “Sentir com a Igreja, amar a Igreja, caminhar como Igreja, ser filhos da Igreja”! A função verdadeiramente útil da distinção é ser capaz de promover a união, pois organizando o que cada um pensa, a verdade poderá florescer com mais facilidade, e a verdade, como se sabe, é una – não dividida.

52. Embora alguns pensem que o múnus de ensinar se restrinja apenas aos sacerdotes que agregam às suas funções as aulas ministradas no seminário e em outras instituições de ensino, gostaria de lembrar que todos os sacerdotes possuem tal dever. Mesmo não sendo especificamente professores, a todos é conferida a missão do pastoreio das mentes. Não gostaria que isso fosse tratado como um fardo. É importante saciar também essa fome de nosso povo. Para isso, a organização de cursos ou convites para simpósios ou palestras faz um bem muito grande para esclarecer as pessoas sobre as “razões de nossa fé”. Essa tarefa é muito importante, pois, sem formação de critérios, as pessoas, sobretudo os jovens, se tornam presas fáceis diante das ideologias que o mundo nos apresenta. E isso temos percebido muito nos tempos atuais. Machuca-nos ver tantas pessoas cooptadas pelas mentiras ideológicas ou religiosas por falta de um esclarecimento melhor em nossas comunidades, as quais frequentaram por tanto tempo.

53. Por isso, cultivem a unidade com seus irmãos, pois vocês agora, e mais tarde como presbíteros, irão precisar uns dos outros para ser bons pastores. Ninguém possui todas as capacidades, só a Igreja as possui na sua completude. O que falta em você há de encontrar em outro. Se forem amigos e irmãos, a sua comunidade terá o que é seu e o que é do outro, mas se forem adversários ou até mesmo inimigos, ela carecerá daquilo que não há em você. A divisão dentro do clero enfraquece a Igreja. Mais do que nunca ressoe de novo o lema “que todos sejam um”. Um grito se eleva do profundo do meu ser: aprendam sempre mais a viver santamente em unidade, pois diante dos desafios de hoje necessitamos de uma Igreja unida, fraterna e a caminho da santidade!

54. O que distingue o sacerdote diocesano, conforme afirma o Papa Francisco, é precisamente a „diocesaneidade‟, e a „diocesaneidade‟ tem a sua pedra angular na relação frequente com o bispo, no diálogo e no discernimento com ele. “Um sacerdote que não tem relacionamento assíduo com o seu bispo lentamente se isola do corpo diocesano e a sua fecundidade diminui, principalmente porque não exercita o diálogo com o Pai da Diocese” (Discurso à comunidade do Pontifício Seminário Lombardo de Roma, 25/1/2016). Estarei sempre de coração e braços abertos para acompanhá-los na caminhada e acolhê-los nas dificuldades. Hoje, além do presencial, que é sempre possível e essencial, existem, para momentos urgentes, as mídias com as quais estamos coligados e que sempre podemos nos comunicar.

55. Há, ainda, ofícios de ensino que fazem parte da vida de todos: a catequese, a pregação e os meios modernos de comunicação. Para exercer bem esses ofícios, necessitamos de ajuda da Sagrada Escritura – fonte da revelação e do conteúdo de nossa pregação, do Catecismo da Igreja Católica – onde a revelação está sistematizada, explicitando o que cremos, e do Código de Direito Canônico – que versa sobre o que devemos fazer para nos mantermos fiéis ao que ensinam os dois primeiros livros. Isto é o mínimo que se deve esperar de um pastor de almas.

 

Catequese

56. Temos a Iniciação Cristã como um grande dom para a caminhada da Igreja hoje. É importante que após o primeiro anúncio venha a catequese: “Bem depressa se começou a chamar catequese ao conjunto dos esforços envidados na Igreja para fazer discípulos, para ajudar os homens a acreditar que Jesus é o Filho de Deus, a fim de que, mediante a fé, tenham a vida em Seu nome, para os educar e instruir quanto a esta vida e assim edificar o Corpo de Cristo. A Igreja nunca cessou de consagrar a tudo isto as suas energias” (nº1). Esse trecho da Exortação Apostólica Catechesi Tradendae deixa claro que o cerne de toda a catequese é o reconhecimento de que Jesus é o Filho de Deus e que os cristãos devem viver uma vida conforme o Seu nome. Essa afirmação pode parecer singela, mas nela estão contidas todas as verdades dogmáticas e morais da Igreja.

57. Evidentemente, todos os temas devem ser tratados de modo sistemático, como indica a própria Exortação, segundo métodos pedagógicos que podem ser diversos, desde que mantido o compromisso do catequista com o correto ensinamento dos artigos da fé.

58. Sabemos que o primeiro catequista da diocese é o bispo, mas de cada comunidade é o próprio sacerdote ao qual ela foi confiada. É claro que as atividades do padre impossibilitam-no de conduzir toda a catequese sozinho, mas, com algum esforço, é possível manter encontros frequentes com os catequistas para falar sobre a doutrina, pois o esclarecimento do catequista é o esclarecimento da própria comunidade. Aprender a trabalhar pastoral com colaboradores conscientes e adultos faz muita diferença. Esse é outro carisma que o padre é chamado a ter: saber compartilhar funções e missões, ao mesmo tempo em que procura formar a todos.

59. Tanto maior a clareza com que vocês conseguirem passar aos seus catequistas e demais colaboradores as verdades de fé, tanto mais seguro será o conteúdo doutrinal da catequese. Entretanto, a clareza do ensinamento depende da profundidade do conhecimento. Lembrem-se da importância do hoje na formação doutrinal, pois, a formação para catequistas que vocês terão de dar quando párocos, já está sendo preparada agora no período do seminário, naquilo que é essencial.

 

Pregação

60. Ide por todo o mundo e a todos pregai o Evangelho foi uma ordem de Nosso Senhor. Acerca da pregação apostólica, São Paulo diz claramente: nós pregamos Cristo crucificado escândalo para os judeus, loucura para os pagãos. Esse deve ser o cerne da nossa pregação, pois a crucifixão de Cristo significa o mistério da salvação dos homens. Em outras palavras, a salvação trazida por Cristo é a grande novidade que devemos pregar e, junto com São Paulo, repito: Não pelas nossas próprias forças, mas pela graça divina que em nós opera o querer e o fazer.

61. Este mandato de Jesus Cristo de anunciar o Evangelho a todos é parte integrante da missão da Igreja. Não tenham medo de se empenhar na missão do anúncio e testemunho do Evangelho. Há tanta gente que já não conhece Jesus Cristo, pois vivemos num mundo muito secularizado. O ardor missionário é a medida do nosso amor para com Jesus Cristo. Os grandes Santos tiveram a missão no coração. Santa Terezinha, a partir do interior de um Carmelo, tornou-se a Padroeira das Missões. O Papa Francisco tem insistido numa Igreja em saída. Nesta, o presbítero deve ser um homem em saída, a exemplo de Jesus Cristo, que ia de aldeia em aldeia anunciando a boa notícia do Reino de Deus. Relembro as palavras de Papa Francisco aos sacerdotes sobre a Missão Evangelizadora do Presbítero: “Nesta missão evangelizadora, os presbíteros são chamados a aumentar a consciência de ser pastores, enviados para estar no meio do seu rebanho, para tornar o Senhor presente através da Eucaristia e para dispensar a sua misericórdia. Trata-se de „ser‟ sacerdotes, sem se limitar a „desempenhar a função‟ de presbíteros, livres de toda a mundanidade espiritual, conscientes de que é a sua vida que evangeliza, ainda antes que as suas obras. Como é agradável ver sacerdotes alegres na sua vocação, com uma tranquilidade de fundo, que os sustém até nos momentos de fadiga e sofrimento”! (Discurso à Plenária da Congregação para o Clero, 3 de Outubro de 2014).

62. A Igreja, preocupada com as homilias, tem insistido sobre o conteúdo das mesmas e a facilidade de compreensão por parte do povo. O Diretório para as Homilias, publicado pela Congregação para o Culto Divino, é uma orientação que ajuda em nossa caminhada, mas sem dúvida, a experiência da vida e da oração junto com a realidade do povo faz com que a Palavra ouvida e acolhida seja traduzida para o povo pelos pastores que foram formados “segundo o coração de Jesus”.

63. Enquanto os grandes mestres dão ordens a seus discípulos para que, sozinhos, eles as cumpram, Cristo faz o que nos manda enquanto ajuda a cumprir o mandato. A nossa pregação, portanto, está a serviço da ação da graça divina, para que sejamos propagadores da fé que vem pelo ouvido. A fé, que é o princípio de toda a vida interior, plasma a inteligência e a vontade do homem de modo a gerar um homem novo. A nossa pregação deve ser canal da graça de Deus para levar a fé àqueles que ainda não a possuem e confirmar na perseverança os que já aderiram.

64. Exatamente por que somos anunciadores de uma verdade que nos transcende, devemos ser cautelosos na pregação, esclarecendo toda a verdade, evitando, porém a intransigência e a grosseria. O Papa Francisco tem insistido em sermos anunciadores de uma boa notícia misericordiosa para o nosso povo e, justamente nas confissões, termos um coração que se derrame em misericórdia. É a face misericordiosa da Igreja, o grande anúncio que hoje somos chamados a fazer. Considerar os limites de quem nos escuta faz parte de uma boa pregação. Vale lembrar que “para os judeus fiz-me judeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que estão debaixo da lei, fiz-me como se eu estivesse debaixo da lei, embora o não esteja, a fim de ganhar aqueles que estão debaixo da lei (…) Fiz-me fraco com os fracos, a fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, a fim de salvar a todos” (1Cor 9,20.22) .

65. Não devemos pregar para que apreciem nossos recursos de oratória ou para ouvir aplausos, mas para que os ouvintes tenham as suas vidas convertidas totalmente em Cristo e perseverem na fé. Para que escutem a voz do Senhor pela nossa voz. Por outro lado, não caiamos na tentação de querer esgotar o ensinamento da Igreja em uma única pregação, sobretudo se for homilia. O principal fruto da pregação é a escuta da Palavra que anuncia uma boa notícia. Esta suscita bons propósitos, que levam a um novo posicionamento de vida. Supõe-se depois que haja continuidade na catequese, que é o momento de preparar algo mais elaborado, e até mesmo demorado, para a formação das consciências.

66. Por fim, cabe lembrar que existem múltiplas técnicas de oratória, embora a graça não necessite delas para se manifestar (os apóstolos não conheciam essas técnicas). Entretanto, estudá-las é um bem, pois se a graça supõe a natureza, a cada melhora que fazemos mostramos o zelo para com a graça que habita em nós. Afinal, os tempos mudam e, mesmo permanecendo no essencial e importante, é necessário saber utilizar os meios para melhor nos comunicarmos.
Meios modernos

67. O Decreto do Concílio Vaticano II, Inter Mirifica, acerca do uso dos novos meios de comunicação, afirma: “Apressem-se, pois, os sagrados pastores a cumprir neste campo a sua missão, intimamente ligada ao seu dever ordinário de pregar.” Passados mais de 50 anos, esse documento, que abriu a porta a tantos outros, se mostra ainda bastante atual. Mais do que nunca, é fundamental que entendamos os meios de comunicação também como um ambiente próprio para a nossa pregação, lugar de manifestar que a graça de Deus é caminho para transformar a tristeza e a angústia do homem de hoje em alegria e esperança.

68. Esta não é uma tarefa fácil em um mundo secularizado como o nosso, mas gosto de trazer à mente aquilo que falou Nosso Senhor aos discípulos: “Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas. Cuidai-vos dos homens. Eles vos levarão aos seus tribunais e açoitar-vos-ão com varas nas suas sinagogas. Sereis por minha causa levados diante dos governadores e dos reis: servireis assim de testemunho para eles e para os pagãos. Quando fordes presos, não vos preocupeis nem pela maneira com que haveis de falar, nem pelo que haveis de dizer: naquele momento ser-vos-á inspirado o que haveis de dizer” (Mt 10,16-19).

69. Eis a grande instrução que Cristo dá aos pregadores do Evangelho, que somos nós, os discípulos a quem Ele está falando hoje. Muito nos tranquiliza saber que o Senhor estará conosco quando tivermos que pregar a sua Boa Nova, mas é importante levar em conta o que Ele diz, logo no início: Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas. Eis a nossa parte, a prudência e a simplicidade.

70. Uma pregação preparada com prudência deve usar tudo o que está ao nosso alcance, não para impor, mas para facilitar a ação da graça que há de converter. Três aspectos não podem ser esquecidos: a vida moral do pregador, a disposição do ouvinte e a solidez do discurso.

71. Acerca do primeiro aspecto, São Paulo afirma: “A ninguém damos qualquer motivo de escândalo, para que o nosso ministério não seja desacreditado” (2Cor 6,3). O Apóstolo quer dizer que a sua vida moral é premissa importante dos seus argumentos. Nunca podemos escandalizar as pessoas em lugar algum, ainda mais nos locais em que estamos pregando, pois significaria desdizer nossas palavras. Isto vale tanto para os contatos humanos quanto para a evangelização na mídia. Para que imitemos São Paulo no seu conselho, seria bom conservar em nossas mentes o seguinte lema: a internet é ambão, minhas postagens são palestras e pregações, minhas fotos são exemplos e testemunhos.

72. O segundo aspecto da pregação se refere a estarmos atentos aos ânimos daqueles que nos ouvem e ter claros os momentos de falar e os momentos de calar, para que a verdade não seja banalizada e tratada como mera opinião. É o que dizia Nosso Senhor, com uma palavra bastante dura: não atireis pérolas aos porcos, isto é, a verdade não passará pelos olhos dos que se cegaram nem pelos ouvidos dos que se fizeram surdos. Entretanto, não podemos deixar de pregar por causa da animosidade de alguns. Quando discernimos que é hora de falar devemos pregar, dizer a verdade confiando no Senhor. Afinal, tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus.

73. Por fim, precisamos estar plenamente convencidos da verdade que pregamos. É importante que transpiremos o ensinamento da Igreja na voz e na vida, certos de que a palavra que proferimos vem do próprio Cristo. Mas, não basta a inteligência da fé para falarmos em nome de Deus, é fundamental que estejamos unidos à sabedoria que vem do alto. São Tiago nos ensina a reconhecê-la: “por outra parte a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, indulgente, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, isenta de imparcialidade e de hipocrisia” (Tg 3,17). A cada vez que nos aproximamos dessas qualidades da sabedoria melhor fica a nossa “argumentação”, não para impor, mas sem dúvida para converter pela força do Espírito do Senhor.

74. Nosso Senhor recomendou não somente a prudência, mas também a simplicidade. Esta reside na confiança de que a obra é de Deus e não devemos nos ensoberbecer por nada. Nunca podemos esquecer de que Deus escolhe os fracos para confundir os fortes. Ter a simplicidade de aceitar isso com amor faz parte de um bom apostolado.

 

O MÚNUS DE REGER

75. Eis o múnus do governo, que é nossa responsabilidade – primeiramente do Bispo, por causa de sua missão, e com ele também dos presbíteros, em colaboração com o ministério episcopal. É lógico que posteriormente será de vocês, e para isso precisarão estar preparados.

76. No Decreto Christus Dominus, o Concílio Vaticano II expõe o plano do governo episcopal e, por conseguinte, a diretriz para a ação governamental dos padres: [os bispos] sejam bons pastores que conhecem suas ovelhas, pois também elas os conhecem. Verdadeiros pais, em espírito de dileção e solicitude se consomem por todos.[…] unam e formem de tal modo toda a família de sua grei que todos, cônscios de suas obrigações, vivam e trabalhem na comunhão da caridade. Podemos observar que a função de governo do bispo é tratada a partir da imagem do pastoreio. O pastor de ovelhas é o curador e o condutor do rebanho, o que identifica a ação de governar com o pastoreio, ação pela qual o sacerdote cuida e conduz o povo de Deus.

77. Este é o múnus através do qual decidimos o que é melhor fazer em cada situação pastoral, e é por meio dele que os outros dois podem ser adequadamente dedicados aos fiéis. Haverá o momento em que se deve rezar e um momento para aprender, há um momento para contemplar e outro para agir, a decisão de qual é o momento mais adequado é o exercício do governo.

78. A diferença fundamental entre o governo dos homens e o governo na Igreja se revela na recomendação do Concílio, para que os bispos sejam verdadeiros pais, que em espírito de dileção e solicitude se consomem por todos. Os poderosos deste mundo também conhecem os seus governados, mas conhecem para dominar, não para tê-los por filhos. Esta é a novidade! Vocês estão sendo formados para reger os fiéis como pais regem seus filhos. O sacerdote exerce seu múnus de governo como pai quando evangeliza, buscando trazer novos filhos para a Igreja, pois o pai é aquele que gera e educa. A geração espiritual se dá pela conversão. A cada pessoa que se converte ao cristianismo um novo filho chega à Igreja.

79. Um bom pai se faz pela educação e exemplo que transmite aos seus filhos. Isso inclui o sustento e a preparação para o futuro. O mesmo ocorre com o sacerdote, que deverá educar os seus filhos: animando-os a viver em comunidade, sustentando-os com a vida de oração e os sacramentos, preparando-os pela formação espiritual e o exemplo.

80. É interessante perceber que o documento não se limita a dizer que os sacerdotes precisam ser pais, mas alerta para a necessidade de formarem uma família. Não qualquer família, mas aquela em que todos estão cônscios das suas obrigações, trabalhando na caridade. Isso quer dizer que o nosso governo pastoral não tem apenas um objetivo longínquo, mas também um objetivo próximo: formar uma grande família dos regenerados pela graça. O que o documento acaba por nos alertar é que a meta final da evangelização é o céu, claro, mas a meta imediata é constituírem a família dos filhos e filhas de Deus.

81. O documento providencialmente prossegue com uma afirmação que podemos aplicar a todos nós: “cônscios de suas obrigações, vivam e trabalhem na comunhão da caridade”. Ou seja, o caminho para que as dioceses sejam famílias começa com o dever de todos tomarem consciência de suas obrigações. “Tomar consciência” não significa necessariamente saber o que deve ser feito em cada circunstância, mas aderir ao plano de Deus para a nossa Arquidiocese. Essa adesão implica em colocar à disposição os dons que recebeu, consciente de que lhe foram dados para a edificação da Igreja.

82. Por isso, “em virtude da graça que me foi dada, recomendo a todos e a cada um: não façam de si próprios uma opinião maior do que convém, mas um conceito razoavelmente modesto, de acordo com o grau de fé que Deus lhes distribuiu. Pois, como em um só corpo temos muitos membros e cada um dos nossos membros tem diferente função, assim nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo em Cristo, e cada um de nós é membro um do outro. Temos dons diferentes, conforme a graça que nos foi conferida. Aquele que tem o dom da profecia, exerça-o conforme a fé. Aquele que é chamado ao ministério, dedique-se ao ministério. Se tem o dom de ensinar, que ensine. o dom de exortar, que exorte. aquele que distribui as esmolas, faça-o com simplicidade, aquele que preside, presida com zelo, aquele que exerce a misericórdia, que o faça com afabilidade” (Rm 12,3-8).

83. O que foi descrito acima se aplica a todos nós, pois essa instrução é a carta magna daquele que é membro de uma comunidade. Por um lado, todos somos ovelhas do Bom Pastor que é Cristo Jesus. Por outro, temos de ser pastores, o que não significa apenas colocar nossos talentos à disposição daquele que nos é superior, mas também favorecer o exercício dos dons daqueles que são nossa responsabilidade. Isto quer dizer que faz parte do exercício do governo tornar resplandecente o dom de cada um em vista do bem comum, que é a santificação de uns pelos outros. Esse exercício do governo consiste em conduzir as almas para Deus, (governo espiritual), sem descuidar das suas necessidades humanas, (governo temporal).

 

Governo espiritual

84. Para essa missão do padre, vamos nos valer de uma obra muito rica acerca do governo espiritual que é a Regra Pastoral de São Gregório Magno. Gostaria de ressaltar, em linhas gerais, aqueles aspectos que mais chamam a atenção e que se percebe serem mais urgentes para o bom exercício da pastoral.

85. Primeiramente destaco, e é importantíssimo, que aqueles que exercem o ministério pastoral busquem incessantemente aplicar nas suas vidas aquilo que aprenderam com o estudo, para que o rebanho não seja confundido. Como diz São Gregório, quando o pastor anda pelo despenhadeiro, o rebanho cai no precipício. Governar uma comunidade eclesial tem tudo a ver com a santidade do pastor. Para o governo temporal, de fato, as habilidades humanas podem bastar, mas não para o governo espiritual. Para o governo espiritual é preciso pastores com ternura.

86. Relembro aqui as palavras claras do Papa Francisco na homilia da Santa Missa, durante o 3º Retiro Mundial de Sacerdotes em 2015: “Quantas vezes penso que temos medo da ternura de Deus, e dado que tememos a ternura de Deus, impedimos a sua experiência em nós mesmos”. “E por isso, muitas vezes somos duros, severos, castigadores… Somos pastores sem ternura! O que nos diz Jesus, no capítulo 15 de Lucas? Sobre aquele pastor que se deu conta de que tinha noventa e nove ovelhas e que lhe faltava uma. Deixou-as bem protegidas, fechou-as à chave e foi à procura daquela, que estava presa no meio dos arbustos… E não a espancou, nem a repreendeu: pegou nela ao colo, abraçou-a e curou-a, porque estava ferida”.

87. O segundo aspecto importante para o governo das almas é o modo como se deve admoestar. Sobre isto, o grande Doutor da Igreja diz: não a todos convém uma única e mesma exortação, pois nem todos estão sujeitos aos mesmos hábitos de vida. Porque, com frequência, o que é útil a alguns prejudica a outros. Essa é outra descoberta importante acerca do governo que temos de exercer, pois nos ensina que as exortações devem ser personalizadas como são as ações de um médico. O governo espiritual deve ser exercido como uma medicina do espírito a curar gradativa e eficazmente cada chaga da alma. Sobre isso vocês devem ser judiciosos, precisos como um cirurgião. É bom que fixem a frase: “o que é útil a alguns pode prejudicar outros”, para não caírem no erro de usar a mesma fórmula de conselho para todos.

88. Ainda nesse segundo ponto, São Gregório desenvolveu uma regra para o tratamento de cada imperfeição espiritual com a qual se deve lidar: “um defeito se cura com a qualidade que lhe é oposta”. Por exemplo, os orgulhosos são curados pelos repetidos atos de humildade, e os pusilânimes pelos atos de coragem. Essa é uma regra geral que se deve usar no confessionário e no ambão. Pois a palavra do pastor, que é uma espada que corta à direita e à esquerda, deve ser tal que sirva para curar os orgulhosos e os pusilânimes, sem que a cura de um acabe por adoecer o outro.

89. Por fim, ressalto que o governo espiritual exige muita humildade daquele que se propõe a fazê-lo. Infelizmente, não posso deixar de lembrar que “para muitos a excelência da sua virtude foi a causa da sua perdição”. Digo isso, pois toda vez que somos bem sucedidos devemos imprimir em nós mesmos a “mortificação do temor para que, ao restituir a saúde aos outros, curando as suas feridas, não nos inchemos do orgulho e negligenciemos a própria saúde”. Tudo é dom do Senhor e temos que ter cuidado com o orgulho.

90. Considero fundamental que apliquemos esta exortação a nós mesmos, de modo que não se provoquem divisões fundadas no orgulho daqueles que acreditam ser sua ação mais importante que a do outro. Ninguém jamais encontrou por si só o “jeito certo de ser Igreja”, pois não há entre nós aquele que possua “todas” as perfeições. Somos humanos, ao mesmo tempo bons e débeis. O nosso modo de ser Igreja pode ser inspirado por Deus, mas é apenas um modo entre os outros. Houve outros modos antes de nós, e haverá outros depois de nós. Mas a Igreja de Cristo permanecerá, pois as portas do inferno não prevalecerão sobre ela.

 

Governo Temporal

91. Sobre o governo temporal, acredito que vocês conheçam os pontos fundamentais. O dinheiro, a fama e o prazer são a tríade que destrói muitas vocações. Mesmo quando acreditamos viver desapegados de tudo isso, não é prudente subestimar estes aspectos. Vejamos brevemente acerca do perigo destas tentações no exercício do governo temporal.

92. Acerca do dinheiro, minha recomendação é: não devem fazer concessão à desonestidade, ainda que pequena, pois o pecado mesmo oculto é palha colocada no fogo da paixão, que não se acalmará antes de devorar alguma coisa. Por outro lado, não sejam escrupulosos, para que o temor do mal não os torne incapazes de tomar decisões. Busquem aconselhamento com pessoas mais experientes em lidar com esse problema, de modo a não caírem na ilusão de que podem resolver tudo sozinhos. Porém, jamais atuar com interesse financeiro. Embora a sociedade “idolatre” o vil metal, cabe a nós utilizá-lo como servo e para o bem da evangelização.

93. A fama é a segunda grande tentação para o exercício do governo temporal. Quanto a essa: sejam autênticos! Nunca falsifiquem sua vocação nem a si próprios, para buscar popularidade que possa atrair as pessoas. Aqueles que são chamados por Deus para congregar multidões recebam isso como uma missão, que lhes é naturalmente confiada. Vejam o exemplo do Cura d’Ars, que atraía muita gente pelo conteúdo de sua pregação e pelo discernimento no confessionário. No entanto, sua vida foi uma contínua e humilde busca da santidade. Há outros padres na Igreja que foram muito santos e não tinham essa capacidade de aglomerar multidões, o que em nada diminui o valor da sua obra, desde que realizada segundo a vontade de Deus.

94. O Papa Francisco, ao se referir ao que ele chama de “sacerdote medíocre”, nos ajude nessa reflexão ao afirmar que “o sacerdote começa a se contentar com um pouco da atenção recebida, julga o ministério com base em suas realizações e se contenta em buscar aquilo que lhe agrada, tornando-se morno e sem nenhum interesse real pelos outros” (Discurso à comunidade do Pontifício Seminário Lombardo de Roma, 25/1/2016).

95. O desejo da fama também pode envolver outros interesses, pois ela traz consigo o dinheiro e as vantagens. Porém, a riqueza da Igreja são as pessoas, não os cifrões. Quando olhamos para a assembleia lotada, o que deve nos preocupar é a salvação de cada pessoa ali presente. É preciso, inclusive, cautela quanto ao escândalo a ser provocado entre as pessoas, pois elas sabem diferenciar uma ação honesta de uma falsificação, mesmo que não o manifestem. Por isso, não corramos o risco de sequer parecer gananciosos, antes busquemos as coisas do alto e tudo o mais nos será dado por acréscimo.

96. Por fim, o prazer é o vilão mais perigoso de todos, pois a fama e o dinheiro são seus servos. Além dos prazeres ilícitos, que já abandonamos no Batismo, restam as coisas lícitas, mas que facilmente podem nos desencaminhar para o hedonismo, alimentando hábitos caros e requintados. É nesse momento que corremos o risco de viver o sacerdócio não por causa do amor a Deus e aos fiéis, mas pelo fato de perceber que a saúde financeira da comunidade eclesial é identificada com a nossa própria, e reflete nossa qualidade de gestor. Essa é a situação em que nos assemelhamos muito mais a bons empresários, tornando-nos, porém, falsificadores do sacerdócio. Isto não significa que se deve negligenciar o cuidado material com a comunidade que nos foi confiada. As pessoas precisam ver na Igreja e em cada padre o que nem sempre encontram no seu dia-a-dia. De fato, a realização do padre zeloso e do padre empresário não se diferencia no objeto, mas na motivação. Ninguém vai saber se você cuida por zelo ou por si próprio: isso é somente entre você e Deus.

 

O MÚNUS DE SANTIFICAR

97. É muito bela a maneira pela qual nos fala o Concílio Vaticano II sobre o Múnus de Santificar do bispo diocesano. Fazendo memória da Carta aos Hebreus, pede que “lembrem-se os bispos que foram escolhidos dentre os homens e constituídos a favor dos homens nas coisas que se referem a Deus, para oferecerem dons e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5,1). Aqui então, podemos tirar algumas reflexões que nos ajudarão a entender melhor o que significa e como devemos exercer essa missão.

98. Em primeiro lugar, o Concílio deixa claro que fomos escolhidos por Deus, e dessa forma não podemos esquecer a liberdade divina em fazer suas escolhas. Em toda a História da Salvação, Deus revela certa preferência pelos menores, pelos fracos. Podemos também olhar para aqueles doze que Jesus chamou para estarem mais próximos Dele. Com isso, devemos ter em mente que a nossa vocação não é fruto de nossas habilidades e competências, mas da vontade misericordiosa de Deus e da graça suficiente do Senhor que quer, em nossa fraqueza, manifestar seu poder. Assim, não devemos nos deixar levar pelo orgulho dessa escolha, já que Deus costuma chamar os menores.

99. “Quando alguém se sente um pouco mais seguro, começa a apoderar-se de atributos que não são seus, mas do Senhor. O encanto começa a degradar-se, e isso está na base do clericalismo ou da atitude dos que se sentem puros. A adesão formal às regras, aos nossos esquemas mentais, prevalece. O encanto se degrada, acreditamos que podemos fazer tudo sozinhos, que somos os protagonistas. E se alguém é um ministro de Deus, acaba por acreditar que está separado do povo, dono da doutrina, titular de um poder, fechado às surpresas de Deus” (Papa Francisco – O Nome de Deus é Misericórdia).

100. Levem isso em consideração com muita seriedade, pois é um ponto fundamental no nosso ministério. Uma vez que reconhecemos ser pequenos e frágeis, podemos abrir nossa mente e coração para a necessidade de ser capacitados por Deus, de modo que nos tornemos cada vez mais dóceis à ação Dele em nossa vida e nosso ministério.

101. Podemos, então, entender um segundo ponto que o documento aborda. Ele é quem vai nos transformar naquilo que deseja de nós. Ao chamar os primeiros discípulos, Vinde após mim e eu vos farei pescadores de homens, Jesus promete que, quando alguém aprende a segui-lo, Ele mesmo vai fazer dessa pessoa aquilo que vislumbra para ela. Colocar-se depois do Cristo é entender que não é Ele quem deve adaptar-se aos meus critérios, mas eu aos Dele. Não foi para cuidar das nossas coisas, mas das coisas de Deus que nós fomos chamados por Ele mesmo.

102. Como consequência do fato de que Deus mesmo nos constitui naquilo que deseja para nós, o documento vai dizer que o bispo, e por isso também seus colaboradores, são escolhidos e constituídos em favor dos homens, porém nas coisas que dizem respeito a Deus. As coisas de Deus, os interesses de Deus são aquilo com o que devemos nos preocupar. São Paulo fala do cristão de uma maneira que revela bem essa função tão especial. Ele nos diz que somos embaixadores de Cristo, afinal, o embaixador é justamente aquele que, num país estrangeiro, defende os interesses de seu país. Assim, é de grande importância que os fiéis vejam nos sacerdotes um referencial seguro de homens que possam conduzi-los a Deus e os auxiliem na obra transformadora do Espírito Santo.

103. Ao afirmar que o bispo é escolhido e constituído para cuidar das coisas de Deus entre os homens, o Concílio enumera, ainda, algumas formas ordinárias de realizar essa missão. Em primeiro lugar, temos os sacramentos como meios de santificação. Além disso, a vida de piedade e a vida de oração pessoal contribuem muito para o projeto de Deus em nossa vida. Por isso, aqueles que serão padres e, portanto, colaboradores do epíscopo na árdua missão, devem viver de maneira mais profunda cada um dos meios de santificação para o bem do povo, a saber: sacramentos, oração e piedade.
Sacramentos

104. Os sacramentos são os meios ordinários pelos quais Deus comunica sua graça. É através deles que Deus vai realizando em seu povo aquelas realidades mais belas que desde sempre preparou. Quanto a nós, “é, sobretudo na celebração dos Sacramentos e na Liturgia das Horas que o sacerdote é chamado a viver e a testemunhar a unidade profunda entre o exercício do ministério e a sua vida espiritual: o dom da graça oferecido à Igreja torna-se princípio de santidade e apelo de santificação” (PDV nº26). Assim, santificar o povo de Deus deve ser, antes de tudo, administrar bem os sacramentos.

105. Em primeiro lugar devemos ter muito claro que cada sacramento possui força própria, quer dizer, a força de santificação que recebe de Deus mesmo. Importa que o ritual seja realizado conforme prescreve a Igreja e o ministro tenha a intenção de fazê-lo. A eficácia do sacramento não depende da santidade do ministro nem do lugar onde é realizado. Assim, não são convenientes as comparações entre padres e suas características pessoais de celebrar e pregar. Afinal, a celebração dos Sacramentos é o lugar privilegiado para dizer com a linguagem do testemunho “que é necessário que Ele cresça e que eu diminua”.

106. Também devemos tomar cuidado para que nosso zelo litúrgico não se torne um fim em si mesmo, mas exista em função do mistério que celebramos. Assim, lembremo-nos de que não só o povo de Deus deve colher os frutos dos Sacramentos, mas também nós, afinal o sacerdote é aquele que “deve oferecer sacrifícios tanto pelos pecados do povo quanto pelos seus próprios”.

107. Fico muito feliz com a grande ajuda que vocês seminaristas dão aos sacerdotes nos locais de pastoral, também no âmbito litúrgico. No entanto, rogo para que as preocupações decorrentes de tão bela função não os afastem justamente daquilo que é a causa dessa beleza. Sejam fiéis zeladores da santa Liturgia e dos Sacramentos, de modo que ela nunca seja violada em sua essência, mas também os ritos não se tornem um fim em si mesmo, submetidos ao gosto pessoal de cada um.

108. Por último, mas não menos importante, deve ser o empenho para que toda a riqueza litúrgica e sacramental de nossa Igreja alcance o povo de Deus. Devemos nos esforçar para oferecer aos nossos fiéis aquele serviço litúrgico mais fundamental, da melhor forma que for possível segundo nossa realidade, mas sem nos esquecermos das outras diversas formas de manifestações litúrgicas e paralitúrgicas que tanto enriquecem e preparam os corações das pessoas para bem viver os sacramentos. Para isso, já no tempo de seminário, é preciso esse interesse especial em conhecer o belo patrimônio de cantos, cerimônias, ritos, devoções e outras formas de celebração que tanto bem fazem àquela parcela do povo de Deus a mim confiada, e que com muita alegria será partilhada com vocês, após a ordenação.
Piedade

109. A eficácia dos sacramentos não depende daquele que validamente os administra, mas da própria força do Cristo que neles atua. Porém, dependendo do modo como o sacerdote se coloca diante das coisas de Deus, aqueles fiéis que ele guia tornam-se mais ou menos abertos ao mistério. Fico feliz de termos sacerdotes em nossa Arquidiocese que dão um belo testemunho de piedosa postura diante do sagrado. Desejo que vocês, seminaristas, possam também ser padres que saibam, de maneira muito simples, servir dessa forma o povo Deus.

110. De muitas maneiras se usa o termo piedade, de modo que se pode perder a perspectiva do que realmente se trata. Para que isso não ocorra, precisamos de uma noção de piedade que seja um referencial para refletirmos sobre nós mesmos. Adolph Tanquerey, um clássico autor antigo, fala da piedade como o dom que produz “em nossos corações uma afeição filial para com Deus e uma terna devoção para com as pessoas ou coisas divinas, para nos fazer cumprir com santo fervor os nossos deveres religiosos”. Assim, tenhamos o dom da piedade como uma das mais poderosas formas que Nosso Senhor tem de nos capacitar para o seu serviço e de tocar os corações em relação ao sagrado.

111. O autor nos apresenta, ainda, dois critérios para sabermos se somos piedosos. Primeiro, diz que a piedade cria em nós uma afeição filial para com Deus, quer dizer, que crescemos na consciência de que Deus é nosso Pai, que nos tornamos mais parecidos com Jesus. Depois, faz aumentar em nossos corações a devoção para com as coisas de Deus, de maneira que aprendemos a olhar, tocar e tratar aquilo que se refere a Ele com ternura.

112. Enfim, a piedade não se improvisa de última hora. Se não cultivarmos desde os tempos de seminário o hábito de tratar as coisas de Deus como elas merecem ser tratadas, não será depois da ordenação que aprenderemos. Faz-se necessário a cada dia ir aprendendo com o Espírito Santo a sermos piedosos. Isso vai se dar nas orações comuns, na postura na capela, nos estudos, no trato com os colegas, no lidar com o povo, nos vários serviços litúrgicos e pastorais, enfim, em tudo aquilo que fazemos para a honra e glória do Senhor.

 

Orações

113. O Papa Francisco coloca a oração como o grande dever do pastor. Ela é a nossa grande aliada no dever de santificar o povo de Deus. Pela oração percebemos aquilo que muitas vezes não conseguimos ver direito, isto é, os desígnios de Deus. Digo isso justamente por saber da dificuldade que muitas vezes temos de parar, apesar de todas as nossas preocupações e atividades, e orar. Já no seminário essa dificuldade aparece com muita frequência por causa dos estudos, das funções que desempenhamos, do cumprimento dos horários, das responsabilidades pastorais, enfim, de uma série de compromissos que temos. Com tudo isso, aquela forma de oração, que já não faz parte da rotina de nosso seminário, acaba por também desaparecer de nossa rotina semanal.

114. Isso pode acontecer pela preguiça. Poderia defini-la como uma espécie de “cansaço prévio”, quer dizer, aquele cansaço que acontece antes mesmo de tomarmos alguma iniciativa. Isto cria entre nós e aquilo que devemos fazer a ilusão de uma barreira, contra a qual o melhor remédio é a ação, passar por ela dando início ao que devemos fazer, seja uma oração ou atividade. Uma vez feito isso, metade da preguiça já está vencida e o resto virá com muita naturalidade.

115. Outro motivo muito comum é o fato de não conseguirmos parar para rezar. Isso acontece porque muitas vezes esse intervalo não nos parece levar a lugar algum. Sobre isso, é importante observar que nosso esforço e determinação talvez nos levem até onde queremos chegar, porém só a nossa oração e nossa intimidade com Deus nos fazem chegar aonde Ele nos quer. Assim, o parar se mostra uma necessidade para o caminhar. Um seminarista que não consegue encaixar em sua rotina pelo menos quinze minutos de conversa pessoal com Cristo, corre o risco de ser mais um padre preso num ativismo pastoral, onde o fazer acaba sendo mais importante que o ser. Sobre isso lembra-nos um bispo vietnamita, que passou pela prisão e um dia escutou no seu íntimo e nos escreveu que “escolheste somente Deus, não suas obras”. Sim, nós não devemos nos esquecer de que antes de cuidar das coisas de Deus, nossa prioridade é o próprio Senhor.

116. Assim, que a oração seja fonte do auxílio extraordinário do Senhor, que, junto com os sacramentos e a vida de piedade possa, antes mesmo de fazer a obra de santificação no povo de Deus, alcançar a santidade de vida de cada um de vocês.

 

CONCLUSÃO

117. Vivenciando o Jubileu da Misericórdia, vejo que o início da caminhada vocacional de 2016, nesta Quarta-feira de Cinzas, e abrindo a Campanha da Fraternidade Ecumênica, é também um passo importante que é dado por vocês. Neste ano, a organização de nossos seminários já se vislumbra com novo rosto, embora ainda tenhamos muitos caminhos a percorrer. Agradeço a todos que, unidos na busca de soluções, procuraram fazer o melhor para a formação dos futuros padres, principalmente vocês, caros seminaristas. Vocês são capazes de fazer grandes coisas no Senhor!

118. A recomendação final que lhes dirijo, caros amigos, é que nunca se deixem vencer pelo desânimo, que muitas vezes nasce de alguma ilusória argumentação racional. Quando Deus nos apresenta um bem que nos deixa felizes e nos enche de coragem para executá-lo, vivemos o tempo da consolação. Porém, se cedemos à tentação da dúvida, os passos seguintes podem nos conduzir à ilusão de que encontraremos a comunidade perfeita, uma Igreja composta só de santos, onde não há pecado ou maus desejos.

119. Assim se insinua o erro de lógica, que consiste em confrontar o ideal com a realidade, levando-nos a desacreditar do que parece ser uma utopia, que nunca se realizará na prática. O passo final é a desolação, que nos faz cair na tentação de permanecermos vivendo apenas segundo o razoável, alimentando aspirações medíocres.

120. Pelo contrário, acolham o chamado que Deus lhes fez através da Igreja, com um coração cheio de generosidade e coragem. Nada é impossível para aquele que se põe a caminho, pois sempre que Deus nos convoca a fazer alguma coisa, Ele nos dá os meios necessários para realizá-la.

121. Com afeto paternal, dedico a vocês este breve texto, que lhes entrego com minha bênção, confiando ao Senhor a abertura de seus corações para o ideal que Ele lhes propõe através desta minha mensagem. Que sejam abundantes os frutos para a realização pessoal de cada um na vocação, e para o bem da Igreja no Rio de Janeiro.

São Sebastião do Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 2016

Início do ano formativo, da Quaresma e da Campanha da Fraternidade,

Ano do Jubileu Extraordinário da Misericórdia.

Orani João Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro