Carta Pastoral sobre a superação da violência 2018-05-12T21:40:47+00:00

Project Description

BEMAVENTURADOS OS QUE CONSTROEM A PAZ!

(Mt 5,9)

Carta pastoral do Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro

por ocasião da

Quaresma e da Campanha da Fraternidade de 2018

Ah! Se eu tivesse asas como a pomba,

voaria para um lugar de descanso!

Fugiria para bem longe e moraria no deserto.

Porque só vejo violência e discórdia na cidade!

No seu interior só há injustiça e opressão.

A iniquidade e a fraude não deixam suas praças.

(Sl 55,7-8.10b.11b.12b)

  1. No início desta Quaresma, quando a Campanha da Fraternidade nos convida à superação da violência, considero meu dever, como pastor e cidadão, dirigir-me à cidade do Rio de Janeiro sobre alguns caminhos que podem ser trilhados nesta direção. Não desejo falar apenas aos católicos, mas a todos que estão preocupados com a violência e buscam soluções para o problema. Reconheço que a vontade de muitos pode ser a mesma do salmista, ou seja, fugir para longe, buscando paz em outros lugares (cf. Sl 55,8). Por isso, conclamo os cariocas a nos unirmos neste tempo quaresmal à Igreja em todo o Brasil, que nos convida a trabalhar em favor da superação da violência, recordando que nós todos somos filhos e filhas do mesmo Deus e, por isso, irmãos e irmãs.1
  2. A Quaresma é sempre um tempo de conversão e missão, de solidariedade e fraternidade. Há mais de cinco décadas, a Campanha da Fraternidade nos propõe, nesta época, temas que convidam à conversão dos corações e à transformação da realidade. Este ano estamos diante de uma situação que agride a todos sem distinção, fazendo continuamente vítimas e deixando feridas que custam a sarar.
  3. Acolho o texto-base da CF2018, desejando, nesta nossa carta, destacar alguns aspectos que percebo serem importantes e mesmo urgentes para o Rio de Janeiro. Expresso aqui um pouco do que tenho visto e sentido nos últimos anos, tanto em nossa querida cidade como também em outros lugares por onde minha missão me tem conduzido. Não são poucas as vezes em que, ouvindo pessoas ou escutando minha consciência e meu coração, percebo ecoar o lamento do salmista quando, perplexo, afirma olhar para todos os lados e apenas enxergar a violência em suas variadas formas. Assim é que, diante da aguda e crescente violência, optei por me manifestar, através desta Carta Pastoral, de modo mais direto do que nos anos anteriores.
  4. Todos nos sentimos solidários com o salmista que, inspirado por Deus, expressa o que se passa no coração de toda pessoa que vive agudas situações de violência. Nós nos perguntamos o que fazer diante da violência que nos cerca, que cresce cada dia mais, assumindo formas e níveis que não imaginávamos, e para a qual não conseguimos enxergar soluções.
  5. Na busca de caminhos para a superação da violência, volto-me para aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida – Jesus Cristo (cf. Jo 14,6), em quem se encontra a bem-aventurança da paz. Ao desejo de fuga, expresso no lamento do salmista, o Senhor Jesus apresenta o mandato missionário para construir a paz. Não se trata de apenas constatar a presença da violência e a ausência de paz, mas de trabalhar efetivamente para que a violência seja enfrentada e superada em suas causas e consequências.

 

Uma violência sem limites?

  1. Uma das razões pelas quais os bispos do Brasil aprovaram este tema para a Campanha da Fraternidade de 2018 foi o aumento gritante dos índices e das formas de violência por todo o país. De fato, a violência é um mal que está se multiplicando incessantemente, sob inúmeras formas, e penetra nos mais diversos ambientes, fazendo um número cada vez maior de vítimas. Ela se manifesta na cidade e no campo, atinge crianças, jovens, adultos e idosos, chega às famílias, aos trabalhadores e aos estudantes, afeta os sadios e os enfermos.
  2. O texto-base da Campanha da Fraternidade nos aponta inúmeras formas de violência (16-51), alertando-nos para o fato de que ela já atingiu nossas consciências, nosso modo de pensar e de sentir a realidade e a ela reagir (45-51). As correntes da violência já não amarram apenas nossos braços ou nossas pernas. Elas tomaram conta de nossa mente, fazendo com que acreditemos que somente com mais violência é que resolveremos as grandes questões que marcam o nosso tempo. Mesmo conscientes de que não se apaga incêndio com combustível, como se costuma dizer, estamos de tal modo inseridos num mundo de aguda violência que já não percebemos que as reações concretizadas ou desejadas são também soluções de violência. A realidade dos nossos dias está nos mostrando aquilo que já não conseguimos perceber: não estamos enfrentando a violência, mas contribuindo para que ela aumente e se perpetue. Se alguém nos atinge, queremos fazer o mesmo. Já não acreditamos na recuperação de quem cometeu algum delito. Somos uma sociedade que, direta ou indiretamente, acaba acreditando que somente a morte é a solução para a violência. Esquecemo-nos, porém, de que assim pensando e agindo, tornamo-nos tão violentos quanto aqueles que acusamos deste comportamento.
  3. Esta é a razão pela qual a Campanha da Fraternidade deste ano precisa ter uma abrangência missionária que ultrapasse em muito os limites de nossas igrejas, chegando a todas as pessoas, a quem crê e a quem não crê, aos que buscam a Deus por outros caminhos que não o caminho cristão, a quem sofre e a quem pratica a violência, aos que mais diretamente têm a responsabilidade de enfrentar esta questão, aos que, nas atividades educativas, contribuem para a formação das consciências de crianças, jovens e adolescentes. Todos os anos, a Campanha da Fraternidade não quer ficar restrita ao interior das igrejas. O mesmo deve acontecer este ano, pois a violência não mede idade, condição econômica ou social, religião ou qualquer outra situação. A violência atinge a todos.

 

Não é apenas uma questão de números

  1. É verdade que uma das razões para a escolha deste tema foi o assustador aumento dos índices de violência. Independentemente do modo de classificar e contabilizar a violência e suas vítimas, o resultado é o mesmo: crescimento a níveis insuportáveis. No entanto, a partir do Evangelho, do amor de Deus por todas e cada uma das criaturas, devemos recordar que a questão da violência não pode estar ligada apenas aos altos índices de ocorrência. Bastaria uma única vítima sobre a terra para nos sentirmos incomodados e iniciarmos nosso trabalho de superação. Se nos ativermos apenas ao número alto de vítimas, corremos o risco de indiretamente dizermos que existem índices aceitáveis, que alguns seres humanos podem ser vitimados e que o importante é que não aumente o seu número.
  2. A Campanha da Fraternidade, no entanto, nos indaga se existe algum número humanamente aceitável para a violência e suas vítimas que não seja o número zero. A superação da violência não é uma questão de números. É uma questão de princípios. É uma questão de humanidade e de reconhecimento de que somos todos irmãos e que daremos contas ao Criador pela fraternidade não buscada, não vivida e, pior, destruída. Os números, isto é, os altos índices de violência nos indicam que estamos chegando tarde no enfrentamento da questão. O Santo Padre Francisco nos adverte sobre essa realidade, ao afirmar que “o tempo gasto no ódio e na vingança é muito… não queremos que qualquer tipo de violência restrinja ou suprima nem mais uma vida”. 2
  3. Interessante observar que, em 1983, a Igreja no Brasil já se preocupava com a violência, escolhendo, por isso, o lema “Fraternidade sim. Violência não” para a Campanha da Fraternidade daquele ano. São já 35 anos e o retorno ao tema mostra que é necessário agir com maior vigor, chegando à Páscoa com o coração purificado das algemas da violência. Se a Campanha da Fraternidade não deve terminar no Domingo da Ressurreição, este tempo até lá deve ser dedicado à revisão de nosso pensar e agir, à verificação do quanto estamos contaminados pela violência, o quanto o pecado tomou conta de nós, o quanto acreditamos que somente pela violência enfrentaremos a violência.

 

Um tempo para agir

  1. O enfrentamento da violência é feito através de vários caminhos. O primeiro deles é a tomada de consciência de que a violência não se encontra apenas fora de nós. Ela já tomou conta de cada pessoa, à semelhança de alguém que, vivendo num ambiente poluído, inala continuamente a fumaça até o dia em que, assustada, se pergunta porque está doente se nunca produziu poluição. O segundo caminho é o da denúncia de todas as formas de violência, suas causas e consequências. Não há como calar. Não há como manter-se afastado das vítimas, consolando-se com o fato de a violência não nos ter atingido. Se um irmão sofre, todos sofrem com ele (cf. 1 Cor 12,26), pois nós todos, lembra-nos o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, somos irmãos.
  2. A novidade deste ano consiste na urgência em ultrapassar as atitudes apenas de denúncia, chegando a atitudes, como o próprio tema indica, de superação. Quando identificamos e denunciamos uma situação de violência, é necessário que imediatamente encontremos caminhos para a superação, para que as causas não se repitam e as consequências sejam sanadas ou, pelo menos, amenizadas. Se nosso mundo cria e multiplica a violência, devemos ser ainda mais unidos e criativos para encontrar caminhos de superação. Esta é a finalidade da Campanha da Fraternidade deste ano. Este é o motivo pelo qual me preocupo tanto ao percorrer nossa cidade e me encontrar com inúmeras vítimas da violência. Esta, enfim, é a razão pela qual resolvi escrever esta Carta Pastoral. Confiante na graça de Deus, entrego-a, agradecendo pela leitura e a colocação em prática das suas propostas.

 

A autêntica origem da paz

“Deixo-vos a paz.

A minha paz vos dou.

Eu não a dou como o mundo a dá.”

( Jo 14,27)

  1. A paz, afirma o Papa Francisco, “é uma aspiração profunda de todas as pessoas e de todos os povos, sobretudo de quantos padecem mais duramente pela sua falta”. 3 Sim, o sonho de paz é um sonho humano porque, antes, é um sonho divino. A paz é dom de Deus 4. É presente do céu, entoado pelos anjos na gruta de Belém (cf. Lc 2,14) e derramado pelo Ressuscitado (cf. Jo 20,21). Estar com Jesus Cristo é estar em paz, acreditar na paz, buscar a paz e construir a paz. É por isso que o desejo de paz está presente em todo ser humano, seja ele cristão ou não. Todo ser humano foi criado pelo Deus da Paz para a vida na paz.
  2. Rejeitá-la e abrir espaço para a violência consiste numa forte agressão ao que temos de mais humano dentro de nós, independentemente de nossas crenças religiosas. Não se trata aqui de um assunto restrito aos religiosos num mundo que se afirma cada vez mais laico. A laicidade é um valor na medida em que respeita as diferenças e contribui para que as diversas formas de compreender a vida estejam em comunhão. Ela não pode, entretanto, ser usada como argumento para impedir que se trabalhe pela paz. Quando isso acontece, até mesmo a laicidade se torna um instrumento de violência.
  3. Neste tempo quaresmal, em que nos voltamos com maior intensidade para os relatos da paixão, somos convidados a perceber a paz como dom do Cristo Senhor (cf. Jo 14,27). Somos, no entanto, igualmente convidados a perceber que não se trata da paz “como o mundo a dá”, mas a paz conforme Jesus Cristo a deu. Quem verdadeiramente acredita na paz não pode aceitar que a violência seja caminho para a superação da violência. Como extinguir o fogo com o próprio fogo? Num mundo que nos manda ser violentos em nome da preservação e da liberdade, temos o dever de dizer e mostrar com inequívocas atitudes que este caminho só nos leva à destruição. O verdadeiro caminho para a paz não é o caminho que mata, que extermina o outro, mas é o caminho que restaura, reconstrói, reabilita e perdoa. Jesus Cristo, o Senhor da Paz, em lugar de matar, entregou-se nas mãos dos violentos, clamando ao Pai o perdão por aqueles que não sabiam o que estavam fazendo (cf. Lc 23,34). E esta não é uma atitude superada. É, ao contrário, um desafio a ser compreendido e traduzido para os nossos dias.
  4. Temos hoje tantos recursos! Vivemos numa época em que a tecnologia nos transformou, mais do que em outras épocas, numa única e grande família. Podemos saber do que acontece em qualquer parte do mundo, a qualquer hora. Podemos nos comunicar com quem desejarmos no momento em que desejarmos. Podemos divulgar, explicar, apresentar. Por que, então, ficamos com a forte impressão de que se divulga muito mais a violência? Por que, ao abrir nossos instrumentos de comunicação, tão atualizados, ainda encontramos propostas e mais propostas de desrespeito ao ser humano, de aproveitamento das pessoas, de apologia à destruição desde a vida que está por nascer, de comércio satânico de substâncias que geram dependência para garantir o lucro de quem as vende ou de ensinamentos sobre o uso de armas e técnicas de agressão? Não seria o caso de ocuparmos também este espaço com muito mais exemplos de superação da violência, de valorização da pessoa e de respeito à natureza? Em termos tecnológicos, somos uma geração privilegiada e “a quem muito se dá muito será cobrado” (cf. Lc 12,48).
  5. Assim como são altos os índices de violência, são igualmente grandes as possibilidades de ação para que a violência seja superada. Podemos ficar com a impressão de que, diante da tão diversificada violência, podemos fazer pouco. Isto, no entanto, é uma grave pedra de tropeço. Precisamos evitá-la, considerando que as chances de superação são iguais ou até mesmo maiores que os índices e as formas da violência. Há muito para ser feito. “O campo é imenso, dizia Jesus, mas os operários são poucos” (cf. Lc 10,2). Este pensamento também se aplica à superação da violência. É por isso que precisamos vencer o imobilismo, seja o que decorre do medo, seja o que infelizmente decorre da omissão egoísta de quem só pensa em si mesmo. O domínio sobre o medo e a omissão egoísta exigem confiança no Cristo Senhor e conversão à sua palavra, pois Ele venceu a morte, por amor aos pecadores. Não existe, portanto, mensagem mais adequada à Quaresma e à preparação à Páscoa. Se nada fizermos em relação à violência, com suas causas e consequências, daremos contas ao Deus da Justiça e da Paz.

 

A violência e sua superação na Sagrada Escritura

“Não invejes o homem violento

e não escolhas um de seus caminhos”

(Pr 3,31)

  1. Olhemos, portanto, como a Sagrada Escritura lida com essa questão. Permitam-me apresentar alguns exemplos, dentre os muitos que podem ser colhidos dos seus textos. Lembro que é necessidade nossa estabelecer contato vivo e frequente com a Sagrada Escritura, dela aprendendo a ler a realidade de nossos dias, pois a graça de Deus, sua manifestação e sua vitória sobre o pecado não são questões de tempos antigos. São desafios constantes e, por isso mesmo, muito atuais, bastante propícios para os nossos dias.
  2. De modo bastante resumido, a Sagrada Escritura fala de paz e apresenta a violência como consequência do pecado. É por isso que entendemos tão bem a ligação entre a Quaresma e a Campanha da Fraternidade. De fato, a Sagrada Escritura encontra-se repleta de exemplos de violência. Todos eles são vistos a partir do primeiro ato de desobediência ao mandamento dado por Deus. A prepotência de Adão e Eva os levou a desejarem o que era próprio de Deus, não se reconhecendo como criaturas, vocacionadas ao convívio e, portanto, à fraternidade e à paz. Esta prepotência não permitiu compreenderem que, considerando-se deuses, teriam como resultado a maior de todas as violências que é a morte (cf. Gn 2,17). Quando desobedeceram, mesmo tendo sido avisados, abriram as portas da violência e da morte.
  3. A primeira morte narrada é consequência direta da inveja que levou Caim, um agricultor, a matar com violência o seu irmão Abel, um pastor (cf. Gn 4,1-16). Por detrás desse fratricídio encontra-se o conflito entre duas culturas muito antigas: a agricultura, representada por Caim, e a pastorícia, representada por Abel. Um desequilíbrio social! Os desequilíbrios sociais são geradores de violência e de morte.
  4. O crime de Caim, assassinato do irmão, desencadeia a violência que alcança enormes proporções 5. Este relato surgiu num tempo em que vigorava uma lei, conhecida como “lei de

 

5 Pela primeira vez, ocorre o termo hebraico ḥāmās (cf. Gn 6,11.13), traduzido algumas vezes pelo termo grego adikía. Indica que entre os seres humanos uma ordem estabelecida por Deus foi violada, isto é, uma finalidade foi desviada: a terra está cheia de sangue pela arbitrária opressão praticada pelo ser humano contra o seu semelhante. Pelo termo adikía se indica algo injusto que foi praticado: ferir, danificar, maltratar alguém, cometer pecado (cf. Jn 3,8); ações que qualificam negativamente o ser humano na esfera pessoal e jurídica, por transgredir a lei, tanto contra Deus como contra Carta Pastoral sobre a superação da violência

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o próximo. Nesse sentido, o termo adikía traduz outros termos hebraicos equivalentes: shequer, mentira ou falta de verdade (cf. Ex 23,7; Dt 19,18); āwōn, pecado (cf. Gn 44,16); ’āshaq, fazer injustiça, oprimir, extorquir (cf. Sl 73,8; Ez 22,29). Assim, o ser humano injusto é o que está sob o domínio do pecado, da desobediência a Deus que desencadeou a violência no mundo. Ao lado de adikía, o termo anomía é igualmente usado e indica a ilegalidade, a iniquidade praticada pelos que agem fora da lei (cf. Dt 31,29) e deixam de fazer o bem (cf. Sl 36,4). Logo, um comportamento que não corresponde à norma moral é classificado como injusto (cf. Lc 13,27). Também significa deixar de cumprir os deveres ou enganar, iludir, mentir, ser desonesto (cf. Lc 16,8-9; 18,6).

Lamec”, cuja base era a vingança sem limites, num processo de aguda e infindável violência. O único freio que encontramos naquele período foi a lei do talião, que estabelece a equiparação entre o delito e o castigo. A expressão mais conhecida é aquela que Jesus cita e corrige no Sermão da Montanha: “olho por olho, dente por dente” (cf. Mt 5,38). Para aquela época, a lei do talião pode ser considerada como um avanço sobre o direito à vingança (cf. Ex 21,24). Entretanto, com as observações de Jesus sobre o perdão como regra de ouro (cf. Mt 5,39-42), regra a ser seguida setenta vezes sete vezes (cf. Mt 18,21-22), isto é, infinitamente, estamos diante de um outro modo de lidar com a violência.

  1. Deus não aceita a violência. Ele é paz e esperança. Por isso, já nas primeiras páginas da Bíblia, encontramos sua resposta à crescente violência humana através das águas do dilúvio. À primeira vista, estamos ainda diante de uma resposta violenta, pois se trata de exterminar a humanidade, tamanho era o seu pecado. Quando, porém, prestamos atenção ao texto, vemos que alguns são salvos: Noé, sua mulher, filhos e noras, e os animais levados para dentro da arca. Deus mantém seu amor salvífico e sua esperança no ser humano. A narrativa do dilúvio evoca a iniciativa de Deus em recriar a humanidade. Busca quem seja justo, isto é, quem não caiu nas armadilhas do pecado e da violência. Encontra Noé e sua família. Eles são descendentes de Set, o filho que nasceu de Eva após o assassinato de Abel (cf. Gn 4,25-26). Set e Noé são como uma iniciativa positiva de Deus em relação à humanidade a partir da promessa contida em Gn 3,15. A partir daí, a Escritura narra a história da luta entre essas duas descendências, a da serpente e a da mulher, uma luta interna do ser humano para aderir ao bem e se afastar do mal, luta que deve superar a violência instalada no íntimo do ser humano pelo exercício da fraternidade.
  2. O fratricídio, exemplificado em Caim que mata seu irmão Abel, revela a falta de fraternidade que se repete inúmeras vezes na Sagrada Escritura. Por exemplo, na história de José e seus irmãos marcados por ciúme e inveja (cf. Gn 37,20), na ambição de Abimelec pelo poder, que o levou a matar todos os seus irmãos (cf. Jz 9,24). Gn 34,1-24 menciona a violação feita a uma jovem, Dina, filha de Jacó, que terminou com o assassinato do violador e da sua família pelas mãos de Simeão e Levi (cf. Gn 34,25-31).
  3. A discórdia desencadeada entre Esaú e Jacó, por causa da bênção, não terminou em fratricídio, mas foi superada pela confiança de Jacó em Deus e a sua postura humilde assumida diante de Esaú que, no lugar da vingança, preferiu a reconciliação (cf. Gn 33,1-11). José, filho de Jacó, sofreu violência da parte de seus irmãos, que quase cometeram um fratricídio (cf. Gn 37,20.26-26), mas, quando mudou de status e teve a grande oportunidade de se vingar, ofereceu-lhes o perdão (cf. Gn 45,1-15). Nesses dois casos, a fraternidade prevaleceu. No antigo Israel, cidades refúgio foram estabelecidas, entre os levitas, para proteger quem cometesse algum crime involuntário (cf. Nm 35; Dt 4,41-43). Este foi um passo a mais sobre a lei do talião.
  4. Nestes e noutros exemplos, podemos ver que Deus rejeita quem ama a violência (Sl 11,5). Esta não é outra realidade que a negação da fraternidade, isto é, do laço mais forte que une todos os que pertencem ao gênero humano. A Sagrada Escritura nos ensina que todos os seres humanos são irmãos (cf. Gn 1,28). Quando a fraternidade é violada, a violência aflora e assume diferentes facetas e formas que abalam as relações sociais. O pecado do coração humano atinge as relações sociais. É por isso que o profeta Amós, por exemplo, reprova os abastados do seu tempo que geravam violência através da forma como enriqueciam, isto é, oprimindo e explorando os mais pobres (cf. Am 3,10). Com isso, aumentavam o domínio da violência (cf. Am 6,1-3) 6. Caso típico foi a desapropriação da vinha de Nabot, lapidado por falsas testemunhas e sem ter, sequer, o direito de se defender (cf. 1Rs 21,8-16). Em vários escritos, chamados de sapienciais também encontramos os mais fracos, pequenos, humildes e indefesos como as maiores vítimas da violência (cf. Sl 73,6; 74,19-21) 7.

 

 “Senhor, até quando, clamarei e não escutarás;

gritarei: ‘violência’, e não salvarás”

(Hab 1,2)

  1. A falsa acusação e o juízo injusto acompanham a violência que faz o inocente sofrer nas mãos dos injustos (cf. Sl 7,17; 25,19). Este sofrimento aparece acompanhado pela ação de juízes iníquos (cf. Sl 58,2-3). Quem não encontra proteção no tribunal não lhe resta senão gritar, pedindo ajuda e apelando para Deus, porque o oprimido conhece o direito que lhe está sendo negado (cf. Jr 20,8; Jó 19,7). Onde se escuta o grito: “violência!”, se verifica a opressão e a injustiça (cf. Jr 6,7), pois o direito e as leis foram enfraquecidos (cf. Hab 1,2-3). O tempo da justiça e da paz só chegará quando não se ouvir mais esse grito de violência (cf. Is 60,17-18). Só a soberania de Deus é capaz de triunfar sobre a violência humana (cf. Hab 1,3) e, por Ele, as vítimas gritam por socorro (cf. 2Sm 22,3.49; Sl 18,2.49).

 

Em Jesus Cristo, perdão e fraternidade superam a violência

 

“Ouvistes o que foi dito…

Eu, porém, vos digo…”

(cf. Mt 5,21-48)

 

  1. A mesma violência, fruto do pecado, também está presente no Novo Testamento. Sua superação, contudo, experimenta um salto até então não observado. Jesus Cristo, a paz de Deus caminhando sobre a terra, reverteu, com sua vida, paixão, morte e ressurreição, o processo de vingança e castigo, trazendo o perdão e a reconciliação como caminhos para a paz. Nos evangelhos, Ele manifesta messianicamente o caminho da fraternidade ao assumir Is 61,1-2 como seu projeto de vida ministerial (cf. Lc 4,18-19). A violência busca obstruir a presença e a ação salvífica de Deus, enquanto o Reino afirma-se pela presença do amor de Deus revelado em Jesus Cristo. Fazem parte do Reino de Deus todos os que experimentam a força desse amor que consiste na renúncia da vingança para praticar o bem em prol da paz, um amor onde o bem de todos promove o bem de cada um.
  2. Se pela violência o ser humano, desde as origens, aprendeu a ser conivente com o mal, pela fraternidade universal, redimida em Jesus Cristo, o ser humano pode reorientar sua vida para a superação de todas as formas de transgressão e violências desencadeadas pelo pecado. Pelo mistério da encarnação, o Filho de Deus se fez irmão de cada ser humano e, nele, tornamo-nos irmãos e irmãs. Inaugura-se um parentesco acima da carne e do sangue, um vínculo que se reconhece na escuta obediente da sua palavra, uma fraternidade fundada e regida pelo amor (agápe) que estabelece uma nova ordem entre os seres humanos. O amor exigido entre os irmãos é o mesmo que levou Jesus Cristo à sua entrega total, pois esse amor vai além dos vínculos carnais e espirituais, e leva ao reconhecimento de Jesus Cristo no próximo, em particular naquele que sofre (cf. Mt 25,31-46). Serve de forte exemplo a parábola do bom samaritano, onde a fraternidade falou mais forte que a pureza gerada pelo cumprimento da lei (cf. Lc 10,25-37) e a inimizade entre os judeus e samaritanos (cf Jo 4,9).
  3. Por causa da centralidade do Reino de Deus, Jesus Cristo assume uma forte crítica a todas as formas de violência. Isso acontece, por exemplo, quando Ele liberta um endemoninhado (cf. Mc 9,26), quando denuncia a violência praticada por escribas e fariseus que abusavam do poder e julgavam que podiam ficar impunes (cf. Mt 23,13-35) ou quando liberta pessoas oprimidas por enfermidades (cf. Lc 13,10-17). Jesus, no entanto, dá um passo a mais no enfrentamento da violência. Ele vai até a mentalidade existente naquela época, rompe com essa mentalidade e sua fundamentação. Jesus é o Senhor do sábado (cf. Mc 2,27-28), no qual se deve fazer o bem (cf. Mc 3,1-6). Exige amor incondicional, maior até que os laços de sangue e de família (cf. Lc 9,60). Revela que a integridade física não é superior às exigências da conversão (cf. Mt 5,29-30). Chama de hipócritas e sepulcros caiados os que se apropriaram das leis em benefício próprio (cf. Mt 23,13-36).
  4. A vida de Jesus torna-se eloquente convite aos discípulos para que aprendam a perdoar e a usar de misericórdia, em particular para com os inimigos. Jesus convoca os discípulos a demonstrarem a força da fraternidade (cf. Lc 6,27-38; Mt 18,21-22) e do perdão que invalida a violência: “Pai, perdoa-lhes, não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Assim, a atitude que revela o verdadeiro seguimento é o serviço, “porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10,41-45). Então, ouvir, acolher e praticar esses ensinamentos são as ações que justificam a proclamação: “Senhor! Senhor!”, porque são ações que demonstram a fidelidade a Jesus Cristo e aos seus mandamentos (cf. Mt 7,21; Lc 6,46).

 

“Não te deixes vencer pelo mal,

mas vence o mal pelo bem”

(Rm 12,21)

 

  1. Em todas essas ações, Jesus realiza, em sua pessoa, as expectativas anunciadas na figura do Servo Sofredor 8, pois, ao se confiar totalmente a Deus, triunfa sobre a violência, aceitando sofrer voluntariamente, como irmão de todos os seres humanos. Jesus Cristo é o novo Abel da nova humanidade redimida pelo seu sangue amorosamente derramado. Desse modo, o caminho para a superação da violência é inequivocamente indicado por Jesus. Ele indica a fraternidade entre os seres humanos, com o detalhe de que esta deve ser concretizada do mesmo modo como Ele fez: “como eu vos tenho amado, amai-vos uns aos outros” (cf. Jo 13,34). A paixão e morte de Jesus foi a entrega voluntária do Irmão entre irmãos para que a justiça do amor violado pelo pecado devolvesse a paz à humanidade e os meios para superar a violência. A violência se enfrenta através do amor-doação.

 

“Disse-lhes Jesus outra vez:

A paz seja convosco.

Assim como o Pai me enviou,

também eu vos envio.”

(Jo 20,21)

 

  1. Motivados pela graça de Deus e impulsionados pela Sagrada Escritura, somos convidados a olhar a realidade de nossos dias, buscando não apenas enxergar a violência em suas variadas formas, mas, acima de tudo, discernir caminhos para a superação. A violência é uma realidade incontestável. Suas manifestações e suas vítimas são incontáveis. Não podemos, permitam-me repetir, deixar que nossa inércia atinja os mesmos níveis. Diante da violência, não existe neutralidade. Ou agimos em vista de sua superação ou contribuímos para que ela aumente ainda mais.
  2. O Evangelho nos ensina que a base para qualquer ação é a conversão pessoal. É preciso olhar para dentro de nós mesmos e reconhecer que a possibilidade e, lamentavelmente, a realidade de violência existem em nós. Sem esse reconhecimento, corremos o risco de cair na ilusão prepotente de nos acharmos perfeitos e, com isso, apenas culparmos os outros, lavando nossas mãos no desejo de limpar nossa consciência. A paixão de Jesus nos indica um exemplo bem famoso dessa atitude (cf. Mt 27,24). Esta é a razão pela qual não podemos perder a chance que a Quaresma nos oferece para a conversão. Este, diz S. Paulo, é o tempo favorável (cf. 2 Cor 6,2). Não o desperdicemos!
  3. É por isso que a superação da violência começa pela vivência da Quaresma: rezar mais, refletir mais, libertar-se do desnecessário, fazer jejum e abstinência, confessar-se, participar da Eucaristia. São, como se pode ver, orientações antigas, porém, não superadas. É importante que não caiamos na tentação de achar que algo antigo significa também ultrapassado. Se assim for, abandonaremos os idosos, poderemos jogar fora a Bíblia e destruir o mundo exatamente porque são antigos. Sabemos, porém, que este não é o caminho da vida e da paz. Por isso, peço o empenho de todos para participarem ativamente do que as comunidades oferecem durante a Quaresma e a Campanha da Fraternidade. Nossa Arquidiocese oferece material para reflexão em pequenos grupos, realização da via-sacra, especialmente nas ruas, em atitude missionária, e da hora santa. O importante é aproveitar tudo isso e trabalhar pela conversão pessoal e pela busca de caminhos para a superação da violência.
  4. De modo especial, é necessário rever a vida a partir da ótica da paz. O texto-base da Campanha da Fraternidade nos adverte que “ninguém pode eximir-se de suas responsabilidades, imaginando que a violência sempre está no outro. É preciso que cada um se pergunte: “O que tenho feito para ajudar a construir uma cultura de paz?” (223). Em outras palavras, cada um de nós deve examinar profundamente sua consciência e verificar se tem sido pessoa de diálogo, de escuta e de atenção ao próximo. Se tem conseguido superar os conflitos através do perdão, da reconciliação e da compreensão, colocando-se no lugar dos outros e buscando ver as outras pessoas não como competidoras ou mesmo inimigas, mas, insiste o lema da Campanha da Fraternidade, como irmãos e irmãs.

 

A fraternidade supera a violência

 

“Como é bom e agradável que vivamos unidos,

como se todos fossem irmãos!”

(Sl 133,1)

 

  1. Um segundo caminho para a superação da violência consiste no fortalecer dos relacionamentos e isso acontece através do efetivo convívio em família, em comunidade e nos diversos espaços onde o encontro entre as pessoas adquire valor maior do que outras finalidades para estarem juntas. No convívio fraterno, conhecemos as pessoas de um modo diferente daquele que nos é passado pelos mecanismos geradores de violência. Todos nós possuímos valores e limites. A violência tende a nos fazer enxergar somente os limites. Por sua vez, o convívio nos leva a enxergar também os valores. Por isso é tão importante fortalecer em especial a família, ela que tem sido alvo de tantos ataques, agressões e desvalorizações. Nela aprendemos a reciprocidade. Nela, aprendemos a dar e receber, a contemporizar, a perdoar e ser perdoado, a acolher e ser acolhido, a corrigir e ser corrigido. Por isso, é preciso “destacar a importância social da família, sonhada por Deus como o fruto do amor dos esposos, o espaço onde se aprende a conviver na diferença e a pertencer aos outros”. 9. Trabalhar pela família é, portanto, um caminho sólido para a superação da violência e a construção da cultura da paz.
  2. Desejo do fundo do coração que as famílias se reúnam nesta Quaresma, indagando-se se efetivamente são escolas de relacionamentos, humanização e fraternidade. Peço que cada paróquia, comunidade, movimento e associação valorizem a família e encontrem caminhos para a ação pastoral com as famílias, respeitadas, por certo, as características de cada local. Lembro que, em agosto deste ano, na Irlanda, acontecerá o 9º Encontro Mundial das Famílias, com o lema “O Evangelho da Família: alegria para o mundo”. Em 1997, com a presença do Papa João Paulo II, o Rio de Janeiro sediou este encontro. Temos, portanto, um grande compromisso com a defesa e a promoção da família.10 Não compreendo como uma comunidade não tenha alguma ação pastoral junto às famílias, por menor e mais simples que essa ação venha a ser.
  3. Em torno da importância dos relacionamentos, volto-me ao nº 182 do texto-base da Campanha da Fraternidade para indicar outro caminho para a superação da violência. Além da família, é preciso abrir inúmeros espaços aos relacionamentos, ao convívio e à reciprocidade. A CF 2018, recordando S. João XXIII, em sua encíclica sobre a paz, afirma que “a todos os homens de boa vontade incumbe a imensa tarefa de restaurar as relações de convivência humana na base da verdade, justiça, amor e liberdade: as relações das pessoas entre si, as relações das pessoas com as suas respectivas comunidades políticas, e as dessas comunidades entre si, bem como o relacionamento de pessoas, famílias, organismos intermédios e comunidades políticas com a comunidade mundial”. Como é simples fazer isso! Pena que alguns entraves, originários da violência, atuem tão fortemente entre nós.
  4. Dentre esses entraves, presentes no coração humano, mas vencidos pelos relacionamentos fraternos e gratuitos, desejo destacar três que muito afetam o mundo de hoje. Refiro-me ao preconceito, à intolerância e à discriminação. Reconheço que estas são palavras muito utilizadas em nossos dias, algumas vezes para denunciar e superar manifestações da violência, outras vezes, infelizmente, para desgastar o tema, e ainda outras, apenas para estar atualizado com a terminologia. Importa não esquecer que estes três entraves destroem a fraternidade e impedem que nos vejamos como irmãos e irmãs, ainda que trilhando caminhos diferentes. Por certo, não se trata aqui de, em nome da tolerância, compactuar com o que gera violência, aumentando ainda mais os níveis de pecado no mundo. Compreender não significa compactuar, aceitar não implica concordar. É de longa data a sabedoria que orienta separar o pecado do pecador. Vencer o preconceito, a intolerância e a discriminação significa aprender a fazer esta separação, a olhar a pessoa humana, ver nela um irmão ou irmã, estabelecer relacionamentos fraternos, ajudá-la a superar seus limites e aprender com ela a superar os próprios. Nosso tempo necessita recuperar o autêntico sentido de fraternidade e compreensão.

 

O anúncio de Jesus Cristo como condição de paz

 

“Pus-me então a considerar todas as opressões que se exercem debaixo do sol.

Eis aqui as lágrimas dos oprimidos e não há ninguém para consolá-los.

Seus opressores fazem-lhes violência e não há ninguém para os consolar.”

(Eclesiastes 4, 1)

 

  1. Na medida em que tolerar não significa omitir, ao aumento no índice da violência e no número das vítimas deve corresponder o incremento na atividade evangelizadora. Como bem sabemos, existe enorme diferença entre apresentar Jesus Cristo e impor Jesus Cristo. Sob o medo da imposição e com o louvável argumento do respeito, algumas pessoas acreditam que nem se deva mais falar de Jesus Cristo, de apresentar sua pessoa e sua mensagem. Grande, portanto, é o risco de uma atitude que leve até o extremo da omissão, ainda que sob a melhor das intenções. Nunca poderemos deixar de anunciar Jesus Cristo e o Reino de Deus. Este mandato está na origem e na identidade da Igreja. Transformam-se os tempos e os modos de evangelizar, mas a evangelização deve sempre acontecer.
  2. Por isso, considero importantes todas as iniciativas missionárias que têm sido realizadas por paróquias, movimentos e novas comunidades para que o Evangelho chegue a mais pessoas e grupos. Alegro-me quando constato as visitas a residências, locais de trabalho, hospitais, escolas e presídios. Gostaria de poder estar em cada celebração que acontece nas praças e nas ruas, com a disponibilidade de confissões onde as pessoas estão, por onde elas passam. Na impossibilidade física de sempre estar presente, uno-me na oração, desejando que continuem, que não se deixem levar pelo desânimo quando encontram dificuldades. Estes momentos missionários transmitem forte esperança a pessoas que não conseguiriam ser acolhidas e escutadas se não fosse ali. Mostram que as ruas de nossa cidade não são apenas lugares de violência e desrespeito. São também lugares de fraternidade e fé. Testemunham que nem tudo nessa vida necessita possuir valor monetário para ser reconhecido. O acolhimento gratuito faz com que muitas pessoas, marcadas pelas dores, vitimadas pela violência, possam exclamar como Isabel o fez ao receber a visita de Maria: “como é possível que a Mãe do meu Senhor me venha visitar?” (cf. Lc 1,39-44). Conhecer o Evangelho e ter contato com as comunidades de fé são caminhos para a superação da violência.

 

Corações que escutam

 

“Vinde a mim, vós todos que estais

aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei”.

(Mt 11, 28)

 

  1. Num mundo, portanto, que não estimula tanto os encontros pessoais, diante da experiência de solidão e violência, como é bom ter alguém que nos acolha e escute! Fico igualmente feliz quando vejo surgir em vários lugares atitudes e até mesmo serviços de escuta. São serviços espontâneos, decorrentes da Fé, consequência de quem sabe a importância de ser ouvido, de poder encontrar quem, de modo gratuito e generoso, acolhe, guarda e reza. Deus abençoe essas pessoas que abriram seus corações a este sinal do Espírito Santo. Que amadureçam cada vez mais nesse dom, que as paróquias e outras instâncias eclesiais estimulem o surgimento desses grupos, os quais, independentemente do nome que venham a ter, exercitam a gratuidade do acolhimento. Nossa Arquidiocese possui já há vários anos o Ministério do Acolhimento. Seu serviço mais visível tem sido o das boas-vindas antes da Missa. A criatividade de cada local tem se mostrado interessantíssima e o acolhimento, também fora do momento de chegada para a Missa, pode ser um caminho muito fecundo para a superação da violência. Mais fecundo ainda será este caminho se for aliado à ação missionária que vai ao encontro das pessoas lá onde elas estão. Cada pessoa que acolhe e escuta em nome de Jesus Cristo está, ainda que com outras palavras, dizendo a mesma frase do Senhor: “vinde a mim e eu vos aliviarei”.

 

Aprender a perdoar e a se reconciliar

 

“Não te digo até sete vezes,

mas até setenta vezes sete”.

(Mt 18, 22)

 

  1. Escutar e deixar desabafar produz o efeito de falar ao coração. E, quando se fala ao coração, se consegue fazer brotar dali as mais significativas atitudes, das quais o perdão é, ao mesmo tempo, a mais difícil e a maior. Este aspecto é importante porque, sem o perdão e a reconciliação, não existe efetiva superação da violência. Sempre ficará como que uma conta a ser paga, um desejo de vingança e punibilidade, ao qual podemos até chamar de justiça. Na verdade, porém, permanecerá acesa uma espécie de chama piloto da violência, prestes a explodir quando lhe fornecerem combustível. É por isso que, desde o Ano Santo da Misericórdia, tenho me alegrado bastante com as Escolas de Perdão e Reconciliação, mais conhecidas pela sigla ESPERE. Elas são o trabalho mais conhecido desde aquele Ano Santo, mas não são o único caminho para que o perdão aconteça, brotando de dentro do coração. Muitas outras atividades na mesma direção acontecem em vários locais. A todas envio minha bênção e meu desejo de que cresçam, chegando às vítimas da violência, ajudando-as a superar, pelo perdão e a reconciliação, as cicatrizes existenciais de tanto sofrimento. É indispensável que todas as comunidades tenham grupos com este perfil.

 

Mediação comunitária

 

“Apliquemo-nos ao que

contribui para a paz …”.

(Rm 14, 19)

 

  1. Também no Ano Santo da Misericórdia, nossa Arquidiocese iniciou outra experiência que seguramente deve contribuir para a superação da violência. Refiro-me ao convênio realizado com o Tribunal de Justiça para a criação de alguns centros de mediação comunitária. Atualmente estão em funcionamento sete centros em várias regiões da cidade. Ali se realiza uma concretização do que tecnicamente se chama de justiça restaurativa. Nela, dito de modo muito simples, mais do que os objetos dos conflitos, o importante são as pessoas. Se há conflitos, não se lesando os direitos, segue-se a regra do bom senso e da fraternidade, ajudando as pessoas a compreenderem que não há lesão maior do que a quebra da paz e da fraternidade.
  2. Os centros de mediação comunitária atendem às pessoas que vivem situações de conflito e desejam uma solução não contenciosa. Buscam a paz. Querem a melhor solução possível, preservando os valores maiores do relacionamento, da vizinhança, da amizade e da família. As decisões possuem valor de sentença e são reconhecidas pelo Tribunal de Justiça. Os mediadores são pessoas das paróquias, movimentos e associações, que, após treinamento e com contínua supervisão, acolhem, escutam, ajudam a chegar a um consenso. Não há sequer a necessidade de formação superior especializada para ser um mediador comunitário. O serviço é aberto a todas as pessoas sem qualquer condição. Estes centros de mediação existem em diversos locais da cidade e também em alguns locais de nossas igrejas. Unimo-nos a quem acredita no caminho restaurativo de concretizar a justiça. Abrimos nossas portas e nossas instalações motivados pela gratuidade. Peço que este serviço seja divulgado, que os centros de mediação comunitária sejam conhecidos, que sua proposta seja valorizada e muitos outros corações generosos se ofereçam para o treinamento e para o serviço de mediador.

 

Uma caridade secular

 

“O que fizestes a um desses pequeninos

foi a mim que o fizestes!”

(Mt 25,40)

 

  1. Somos conhecidos por nossa atividade assistencial. Em cada comunidade, ainda que de modos diferentes, são distribuídas cestas com alimentos, existem serviços de atendimento médico, orientação profissional e muito mais. A caridade é de fato nosso distintivo. Não fazemos isso, por certo, com outra intenção que não seja a de servir e ajudar. Na maioria das vezes, nem temos condições de contabilizar tudo que fazemos pois o princípio do respeito a quem recebe nos leva a não nos preocuparmos tanto com números e contas. Se ajudamos, somos felizes. Esta é a dimensão assistencial, socorro mais imediato para as vítimas da violência. Numa sociedade que exclui, abandona e larga ao relento, a atitude cristã do socorro imediato é sinal do amor de Deus.
  2. Por isso, não podemos abandonar este modo tradicional de concretizar a caridade cristã. Por meio da solidariedade de pessoas e grupos, um número incontável de vítimas da violenta pobreza encontra alimento, saúde e dormida. Muitos encontram também recuperação da dependência química, geração de renda e ajuda para construção ou reconstrução de moradia. São, enfim, tantas formas de solidariedade que só me cabe agradecer a Deus e estimular sua continuidade. Por certo, a articulação dos diversos tipos de serviço da caridade imediata em muito poderá ajudar a acolher melhor um número de pessoas ainda maior. Na caridade, não existe competição pois “todos são de Cristo” (cf. 1 Cor 3,6-9). Existe união de forças para melhor servir.
  3. Na verdade, a pobreza é uma forma de violência. Ela acontece quando não se geram condições de acesso ao indispensável à dignidade humana. Que mundo é esse que gera famintos, sem teto, migrantes, refugiados e tantas outras formas, cada vez mais agudas e crescentes de pobreza? Diante dessa realidade, não há como não dizer que a pobreza é uma forma de violência! É uma das formas mais degradantes de violência porque não tem a aparência de violência. Muitas das concretizações da pobreza não se mostram como agressões porque não se apresentam, por exemplo, como lutas, guerras ou assaltos. Nem por isso, entretanto, deixam de ser violentas. É preciso, assim, trabalhar pela superação da pobreza. Fundamentando-se nos ensinamentos do Papa Bento XVI, a Campanha da Fraternidade nos recorda que “não se vence a violência sem atenção aos pobres e sem combate à pobreza. A pobreza encontra-se frequentemente entre os fatores que favorecem ou agravam os conflitos, mesmo os conflitos armados. Estes últimos, por sua vez, alimentam trágicas situações de pobreza… Combater a pobreza é construir a paz”. 11
  4. Junto com a pobreza, devo, em consciência, destacar a corrupção como uma forma aguda e por demais degradante da violência. Muitas vezes, a pobreza não é adequadamente enfrentada exatamente por causa da corrupção. Ela deixa incontáveis vítimas por todas as áreas da vida como, por exemplo, a lastimável situação do atendimento de saúde para a população mais pobre. Outros exemplos podem ser acrescentados, pois não faltam ao nosso redor. A corrupção cega pessoas, retirando delas a capacidade de enxergarem as consequências de seus atos. E são muitas as consequências: humanas e humanitárias, morais e sociais, jurídicas e religiosas. Por isso, reitero o que nós, bispos do Regional Leste 1, afirmamos em nossa mensagem ao final da Assembleia do ano passado: “o dinheiro usurpado pela corrupção está manchado pelo sangue e pelas lágrimas das vítimas dessa calamitosa realidade” 12. Este sangue clama aos céus (cf. Gn 4,10). Superar a cultura da corrupção é também um modo de superar a violência.

 

Conscientizar para superar

 

“Pode acaso um cego guiar outro cego?

Não cairão ambos na cova?”

(Lc 6, 39)

 

  1. Além da caridade mais imediata, existe uma outra forma que consiste em ajudar a perceber o contexto de violência que nos envolve. Além de cuidarmos das consequências, é preciso enfrentar as causas, ir até as origens da violência, ajudar a perceber onde, como e porque a violência existe. Desse fato decorre a importância dos diversos grupos e encontros onde se reflita sobre a violência, com suas causas e os caminhos para a sua superação. Quando se toma consciência da realidade, supera-se o medo, o imobilismo é vencido e atitudes começam a ser tomadas, mesmo que pequenas, de início.
  2. O tema da paz necessita, portanto, ser abordado nos diversos espaços e momentos das comunidades, com seus grupos 13. Mais do que apenas indicar a presença da violência, com suas causas e consequências, é indispensável que se anuncie a paz como uma possibilidade concreta. Urge que se faça o discernimento de caminhos concretos para a construção da paz. Reitero que podem ser ações iniciais pequenas, ações, porém, que levam a transformar corações, consciências e realidade. Não podemos ficar só no âmbito da reflexão, da partilha dos problemas, como se bastasse o desabafo e a conversa. Se antes, ao me referir à escuta, destaquei tanto essas duas atitudes, desabafo e conversa, agora insisto que ambas devem levar a ações de construção da paz, ações que permitam a transformação da mentalidade, passando de uma cultura de violência para uma cultura de paz.
  3. Nesse sentido, destaco a importância das diversas pastorais sociais, em nossa Arquidiocese reunidas num Vicariato a elas dedicado. Destaco os diversos grupos e comissões que atuam na área dos direitos humanos, com especial sensibilidade para os encarcerados, principalmente os mais jovens, que passam por medidas socioeducativas 14. No território de nossa Arquidiocese, encontra-se um conjunto de instituições penais e socioeducativas, exigindo, portanto, presença solidária e restauradora. Estas instituições não podem corresponder à crença de alguns de que tendem mais a escolas de criminalidade do que efetivos caminhos de recuperação. Não é admissível que alguém seja levado a uma instituição com a proposta de se reencontrar e saia de lá ainda mais marcado pela violência.
  4. A Campanha da Fraternidade nos apresenta inúmeras sugestões, algumas das quais colhidas com base na longa prática da Igreja por todo o Brasil. Lembro, por exemplo, a importância de se fazer presente nos conselhos paritários 15. São espaços onde a sociedade civil pode, em espírito de unidade, trabalhar pela superação da violência e a busca de soluções alicerçadas na paz. Podem ajudar a ultrapassar as propostas baseadas no armamento, na punição e na vingança.
  5. É possível também, e mesmo necessário, que se trabalhe para a construção e aplicação de leis que ajudem na superação da violência. Nosso país, costumamos dizer, é rico em legislação, mas não tanto na concretização dessas leis. São muito os exemplos: desde a Declaração dos Direitos Humanos, uma regra universal que em 2018 está completando 70 anos 16, até leis especificamente brasileiras que visam à defesa das vítimas e a barrar posturas violentas. A experiência das leis de iniciativa popular, como a Lei da Ficha Limpa, devem nos estimular a continuar trabalhando por novas leis que atendam ao anseio de paz. Recordo ainda o importante trabalho em prol da criação de políticas públicas que atinjam as causas da violência e ajudem as vítimas a superar as consequências. Políticas públicas será o tema da Campanha da Fraternidade de 2019, em continuidade com o tema deste ano, portanto.

 

A superação de quem cometeu violência

 

“Estive preso e me fostes visitar”

(Mt 25,36)

 

  1. Por isso, apoio tanto nossas pastorais que atuam neste mundo tão complexo e tão desafiador. Rezo incessantemente pela Pastoral Carcerária e pela Pastoral dos Menores Privados de Liberdade. Num mundo que se preocupa bem mais em castigar do que em recuperar, o trabalho destas pastorais é muito importante para a superação da violência. Medidas centradas no encarceramento revelam uma sociedade que somente quer punir e assustar com a punição. Na verdade, porém, esta atitude em nada contribui para que os índices de violência diminuam, pois, como já insisti tanto, ela quer enfrentar a violência com mais violência. Lembro-me das palavras do Papa Francisco durante o Jubileu dos Encarcerados: “Onde houver uma pessoa que errou, nesse lugar se faz ainda mais presente a misericórdia do Pai, para suscitar arrependimento, perdão, reconciliação e paz” 17. É isso que fazemos em nosso trabalho junto aos que estão privados de liberdade. Nem sempre somos compreendidos. Sofremos acusações e preconceito. Importa, todavia, que permaneçamos firmes no caminho da misericórdia (cf. Mt 5,101 Cor 4,12; 2 Cor 4,9), pois assim disse Jesus: “estive preso e me fostes visitar” (cf. Mt 25,36). A Campanha da Fraternidade nos ajuda com seu lema a recordar que somos todos irmãos, inclusive dos que erraram e hoje vivem nos cárceres, tenham esses cárceres o nome que tiverem.
  2. A responsabilidade com essas pastorais não é, portanto, apenas dos grupos que atuam mais diretamente no interior dos cárceres nem das paróquias onde estes cárceres estão localizados. Ela é de todos nós! Ela é dos cristãos que enxergam nos encarcerados o próprio Senhor (cf. Mt 25,40.45). Ela é de todo cidadão que, inconformado com a violência e não tão contaminado pela cultura da violência, reconhece que o caminho é o da efetiva recuperação da pessoa. Por isso, peço que todos se unam para apoiar os trabalhos feitos por esses grupos pastorais. Existem inúmeras formas de fazê-lo, todas testemunhando que não acreditamos na violência, mas na misericórdia e na reconciliação. Recordando as palavras do Papa Francisco aos encarcerados, devemos reconhecer que foi um delito, uma violação da lei, que os levou à condenação. “E, diz o Santo Padre, a privação da liberdade é a forma mais pesada da pena …, porque toca a pessoa no seu âmago mais profundo. Mas a esperança não pode desfalecer. Com efeito, uma coisa é o que merecemos pelo mal realizado; outra, diversa, é a respiração da esperança, que não pode ser sufocada por nada nem ninguém. O nosso coração sempre espera o bem. Devemos isso à misericórdia com que Deus vem ao nosso encontro sem nos abandonar jamais” 18.

 

A união supera a violência

 

“Quem não é contra nós

é a nosso favor!”

(Mc 9,40)

 

  1. Todos sabem que busco a unidade. Este é o meu lema; este é o meu projeto de vida. Também na superação da violência, a unidade se torna uma condição indispensável. Se, em tudo na vida, devemos buscar a união, mais ainda diante de uma realidade como a que nos apresenta este ano a Campanha da Fraternidade. Problemas grandes e complexos exigem mais empenho e consequentemente maior integração. A causa é de todos e o agir deve ser também de todos. Eis por que as parcerias são tão importantes.
  2. A primeira dessas parcerias é a que acontece entre os que seguem a Jesus Cristo. É a união dos cristãos em torno da causa da paz. Entristecemo-nos tanto quando vemos cristãos separados! Mais tristes ainda ficamos quando deixamos a impressão de contendas em lugar de diálogo e encontro. A superação da violência é, sem dúvida, uma causa ecumênica. Em torno dela, os cristãos das diferentes denominações podem e devem se unir, com momentos de oração e celebrações em comum, bem como encontros para refletir sobre situações específicas do local onde estão. O texto-base da Campanha da Fraternidade sugere presença ecumênica em locais marcados por situações violentas, lugares simbólicos, tristemente assinalados por acontecimentos que geraram dor, morte e contínua lembrança do que a violência é capaz de fazer 19.
  3. Estas parcerias se abrem também para a dimensão inter-religiosa, chamando todos os que creem em Deus e O buscam de coração sincero a reconhecerem que Ele é o Deus da Paz, nunca da violência nem da guerra. Quem busca a paz busca o Deus da Paz. Quem se une para trabalhar pela paz está de algum modo unido em torno ao Deus da Paz, ainda que siga caminhos diferentes. A paz, repito, é uma causa de todos. Ninguém pode se isentar de trabalhar por ela, a começar pela paz entre as religiões. Algumas vezes, deparamo-nos com notícias de violência contra uma ou outra denominação religiosa. Símbolos e pessoas sofrem agressão e, quando isso acontece, é sinal de que já perdemos qualquer tipo de respeito. É sinal de que, nesta nossa sociedade do século XXI, a violência se fez mentalidade, se fez cultura. Se nem sempre seguimos o mesmo caminho para Deus, podemos nos encontrar e unir para trilhar o mesmo caminho em busca da paz.
  4. Podemos também fazer parcerias com organismos governamentais ou entidades da sociedade civil que trabalhem pela paz. Importa que não firam a doutrina da Igreja. Desde longa data, vivemos a realidade dos convênios. Alguns apresentam resultados melhores que outros. Nem por isso, devemos desistir de fazer parcerias. A necessidade é tanta que, sem deixarmos de ser vigilantes, devemos buscar e valorizar as chances de parcerias e convênios, abrindo novas frentes para a superação da violência. “Apesar dos obstáculos, das diferenças e das diversas abordagens sobre o modo como conseguir a convivência pacífica, persistirmos na labuta por favorecer a cultura do encontro que exige que, no centro de toda a ação política, social e econômica, se coloque a pessoa humana, a sua sublime dignidade e o respeito pelo bem comum” 20.

 

A busca do Deus da Paz

 

“O Senhor da paz vos conceda a paz

em todo o tempo e em todas as circunstâncias”

(2 Ts 3,16)

 

  1. Nesse sentido, é muito importante que, em meio à diversidade de caminhos para a busca de Deus, se pense a respeito da relação entre esses caminhos e a violência. Por certo, cada pessoa e cada grupo têm o direito de manifestar suas crenças do modo como creem. Cabe aqui, no entanto, uma pergunta: nosso jeito de crer e manifestar o que cremos tem efetivamente contribuído para a construção da paz? Estou ciente de que esta pergunta pode soar estranha num mundo em que, nas palavras, tanto se afirma o respeito e a tolerância. Creio, porém, que devemos sempre refletir sobre as consequências existenciais do que fazemos com nossas crenças. Por mais diferentes que sejam, as religiões buscam a paz e, a meu ver, o resultado oposto, isto é, a violência, depõe contra essa busca.
  2. A começar por nossa casa, conclamo os católicos a se voltarem para a Sagrada Escritura com olhos cada vez mais comprometidos com a paz. Estou consciente dos efeitos da cultura da violência sobre a totalidade de nossas vidas, incluindo aqui a dimensão religiosa. Tenho clareza de que, na Bíblia, existe uma linguagem marcada pela violência, com palavras fortes de guerra e vingança, entre outras. Algumas vezes, esta violência é atribuída ao próprio Deus ou feita em Seu nome. Diante, porém, do Cristo Senhor, diante do Senhor da Paz, precisamos colocar a Boa Nova da Salvação, que é também Boa Nova da Paz, no centro de nossa compreensão da vida à luz da Bíblia. Devemos nos perguntar qual deve ser o caminho certo: o mundo influenciar nossa leitura da Bíblia ou a Bíblia influenciar nossa ação no mundo? Esta é a razão pela qual recomendo que se busquem compreensões e ações, modos de pregar, rezar e celebrar que não deixem a impressão de confirmar a violência. Nosso crer e nosso celebrar devem estimular a paz, devem ajudar a formar consciências e corações de paz, nunca da violência em suas variadas formas, muito menos da violência fundamentada em Deus.

 

Superar a violência contra a criação

 

“A criação geme em dores…”

(Rm 8,22)

 

  1. A superação da violência e a construção da cultura da paz vêm adquirindo também um viés ecológico muito forte. Em virtude da crescente devastação planetária e da impactante Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, o mundo não pode mais fechar os olhos para a violência que está sendo praticada em relação ao planeta, com prejuízos graves para a geração que aí está e também para as futuras gerações. “O cuidado e zelo por toda a criação gera no coração do homem o reconhecimento que tudo que existe, devido a ter sido criado por Deus, possui certo grau de fraternidade com o homem” 21. Não existe, portanto, conflito entre a superação da violência contra o ser humano e a superação da violência contra o planeta. As dimensões social e ecológica precisam andar juntas, pois uma só é a criação. Este é o motivo pelo qual o Papa Francisco destaca tanto que “não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” 22. “A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver com uma deterioração ética e cultural, que acompanha a deterioração ecológica. O homem e a mulher deste mundo pós-moderno correm o risco permanente de se tornarem profundamente individualistas, e muitos problemas sociais de hoje estão relacionados com a busca egoísta duma satisfação imediata, com as crises dos laços familiares e sociais, com as dificuldades em reconhecer o outro” 23.
  2. Não há, desse modo, como não apoiar as inúmeras iniciativas no âmbito da preservação ecológica. Algumas comunidades têm demonstrado avanço neste setor, integrando este trabalho com a geração de renda e outras atividades de cunho social, como, por exemplo, a produção de alimentos. Mais uma vez, trata-se de exercitar a criatividade de modo que preservação do planeta, superação da violência e quebra do individualismo cresçam lado-a-lado. Por isso, peço às comunidades que ainda não conseguiram avançar especificamente na questão ecológica que se empenhem por fazê-lo. Algumas atitudes são muito simples, mas com a força de desencadear um processo muito fecundo.

 

São muitos os desafios

 

“Jesus, saindo, viu uma grande multidão

e teve compaixão deles,

porque eram como ovelhas

que não têm pastor”.

(Mc 6,34)

 

  1. Estas são algumas das minhas reflexões a respeito da superação da violência e da construção de uma cultura da paz. Ao longo de minha vida como religioso, sacerdote e bispo, tenho visto inúmeras formas de agressão ao ser humano e ao meio-ambiente. Como homem de Fé, não posso deixar de ver em cada uma a presença do pecado, às vezes por demais gritante. Mesmo numa sociedade secularizada, é preciso repetir que o pecado existe e que todos precisamos trabalhar contra ele. Esta, com bem sabemos, é a proposta da Quaresma, tempo em que vivemos a Campanha da Fraternidade, um presente de Deus à Igreja e ao povo brasileiro. Dentro do espírito quaresmal, ela quer sempre interpelar toda a sociedade para um aspecto de intensa gravidade. Louvo a Deus, portanto, pela Campanha da Fraternidade, em cujas origens encontra-se um dos meus predecessores na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, o Cardeal Eugenio de Araujo Sales 24. Falecido já há alguns anos 25, D. Eugenio deixou muitas sementes na Igreja do Brasil e do Rio de Janeiro. Algumas ele viu crescer e até experimentou de seus frutos. O importante, lembra-nos a Sagrada Escritura, é semear (cf. Jo. 4,37; 1 Cor 3,7-9). Semeemos, portanto, a paz!
  2. Desejo, pois, que a Quaresma de 2018 seja vivida na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro do modo como tenho experimentado nestes anos em que aqui estou: uma Quaresma orante, comunitária, comprometida e missionária. Orante, porque vejo pessoas e comunidades reunidas para rezar, nas vigílias, nos terços, nas horas-santas e em tudo mais que é organizado. Comunitária nos encontros da CF em Família e outros semelhantes. Comprometida no serviço abnegado em favor da paz, na prática da caridade e na busca por melhores condições de vida para uma gente tão sofrida. Missionária nas vias-sacras organizadas nas ruas e praças, nas visitas às pessoas lá onde elas se encontram e na abertura de novos lugares de culto e reunião. Do mesmo modo como temos feito desde que instituídas pelo Papa Francisco, celebraremos, este ano nos dias 9 e 10 de março, as 24 horas para o Senhor, como intensificação de tudo que fazemos ao longo da Quaresma, estendendo-se depois para o restante do ano.
  3. Como tudo que fazemos procede do Deus da Paz e a Ele deve retornar, encerro esta Carta Pastoral com uma oração. Estou certo de que, ao longo da Quaresma, ela será rezada tantas e tantas vezes! Rezemos pelo Brasil e pelo Rio de Janeiro; rezemos pelo Santo Padre, por mim e pelos bispos auxiliares e eméritos; rezemos pelos padres, diáconos, consagrados, consagradas e seminaristas; rezemos pelas famílias, pelas crianças, jovens e idosos; rezemos pelos pobres, os doentes, os abandonados e solitários; não nos esqueçamos dos encarcerados, dos refugiados e dos pecadores. Rezemos, enfim, pela PAZ.

 

 

ORAÇÃO DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE

Deus e Pai,

nós vos louvamos pelo vosso infinito amor

e vos agradecemos por ter enviado Jesus,

o Filho amado, nosso irmão.

Ele veio trazer paz e fraternidade à terra

e, cheio de ternura e compaixão,

sempre viveu relações repletas de perdão e misericórdia.

Derrama sobre nós o Espírito Santo,

para que, com o coração convertido,

acolhamos o projeto de Jesus

e sejamos construtores de uma sociedade justa e sem violência,

para que, no mundo inteiro, cresça o vosso Reino

de liberdade, verdade e de paz.

Amém!

 

NOTAS:

1 Lema da Campanha da Fraternidade 2018: “Vós todos sois irmãos!” (Mt 23,8)

2 PAPA FRANCISCO, Discuso aos Membros do Governo da Colômbia, ao Corpo Diplomático, às autoridades e aos representantes da sociedade civil, quando de sua visita àquele país, em Bogotá, no dia 7 de setembro de 2017.

3 Papa Francisco, Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz de 2018, nº 1

4 Cf. S. JOÃO PAULO II, A paz: dom de Deus confiado aos homens -Mensagem para a celebração do XV Dia Mundial da Paz, 1° de janeiro de 1982. Carta Pastoral sobre a superação da violência

6 Outros exemplos da crítica profética aos que, estando no vértice social, aumentavam a violência em lugar de agir para superá-la: Mq 6,12; Is 53,9; Sf 1,9; Ez 12,19; 45,9

7 A inveja adorna um homem violento que alcança riqueza pela extorsão (cf. Pr 3,31); e a avidez pelos bens injustos se contrapõe à riqueza do homem justo (cf. Pr 10,2-3.6).

8 cf. Is 50,5-6; 53,9; Lc 22,37; 23,33-46

9 PAPA FRANCISCO, Discuso aos Membros do Governo da Colômbia…

10 Um dos objetivos específicos da CF2018 é exatamente “valorizar a família e a escola como espaços de convivência fraterna, de educação para a paz e de testemunho do amor e do perdão.”

11 Texto-base da CF 2018, nº 193, que cita o Papa BENTO XVI. Mensagem para o 42º Dia Mundial da Paz, 2009. In Mensagens dos Papas sobre o Dia Mundial da Paz 1968 – 2015. Brasília: Edições CNBB, 2015.

12 REGIONAL LESTE 1, Importa que Ele Reine, Mensagem dos Bispos do Regional Leste 1 ao final da Assembleia Anual, 25 de novembro de 2017.

13 Ver no texto-base da CF 2018 as indicações dos nn. 221, 226 e 240.

14 Idem nº 293

15 Texto-base da Campanha da Fraternidade nn. 240, 244

16 A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro 1948

17 PAPA FRANCISCO, Homilia na missa do Jubileu dos Encarcerados, 6 de novembro de 2016

18 Idem

19 Texto-base da CF 2018 nº 240

20 PAPA FRANCISCO, Discuso aos Membros do Governo da Colômbia.

21 Texto-base da Campanha da Fraternidade, nº 149

22 Papa Francisco, Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado com a casa comum, nº 49

23 Idem nº 162

24 O texto-base deste ano apresenta, em seu final um histórico da Campanha da Fraternidade, pp. 100ss.

25 D. Eugenio faleceu no dia 9 de julho de 2012.